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UM DOMINGO DE CÃO

Atualizado: 27 de out.

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conteceu tudo muito rápido! Num estalar de dedos, aqueles paraquedistas se viram a caminho da morte, confusos, sem nenhuma chance aparente de sobreviver! Eles estavam prestes a saltar. Os dois mais próximos da saída, fora Kruger, já haviam se levantado, virado para ela e se colocado em posição. Kruger, ao lado do piloto, estava de pé agachado conferindo uma última vez o equipamento. Ainda não tinha aberto a porta. Ele seria, pela ordem, o primeiro a deixar a aeronave.


Foi ele quem no voo regressando da plataforma, poucos dias atrás, animado e antes de todos, sugeriu de “baterem o ponto”. Ficara sabendo que o velho Wild Bird estava de volta — e com a pintura restaurada! Pelo menos, duas vezes, quando não estavam no mar do Caribe, o grupo marcava de decolar naquele avião. Era uma espécie de mascote. Como o Bird precisou de um reparo, tiveram que usar outro “jato” na última folga (porque passar um mês sem abrir os velames eles não ficariam de forma alguma). Imagina: esse tempo todo sem aquela adrenalina?!


Acontece, porém, que, diante daquele cenário catastrófico, durante um rápido instante, passou pela cabeça de Quaid que teria sido melhor ficar com sua filha aquele domingo curtindo o novo presente dela. A menina insistiu, mas o pai acabou cedendo à pilha dos amigos. Ainda surgiu aquela ideia. Na verdade, a aposta. Foi por causa dela: “a porra da aposta!”, gritou, nervoso como nunca tinha ficado antes na vida, um atemorizado Phill. Espremido contra Quaid nos fundos daquela, agora, “lata velha com asas”, como ele mesmo esbravejou, vendo os segundos correr e sua vida se esvair, como a de cada um dos seus companheiros ali dentro, por cada milésimo do relógio.


Poucos minutos antes, Billy, ainda sentado — como foi o primeiro a entrar, devia ser o último a poder realizar o salto —, havia feito, como sempre, sua “piada aérea”. Reforçou que estava pensando em abrir um bar numa cidade da Califórnia onde sua irmã estava morando agora (ele comentou isso no churrasco do dia anterior). Parecia um lugar legal, movimentado, gente com grana e descolada. Estava propenso a deixar o trabalho na plataforma de petróleo. Vinha refletindo há alguns meses sobre mudar de vida. Talvez fosse cansativo ter que lidar com a rotina de um estabelecimento todos os dias aberto, tendo que servir os outros e aturar gente bêbada, mas podia dar certo. Terminaria os dias sem tanto óleo na cara e nas mãos. E ele já era um habitual frequentador de lugares assim; aparentemente, conhecia o esquema. Quaid disse ao amigo:


— Uma coisa é estar do lado de cá do balcão. A outra é do lado de lá. E eu não aturaria um cara como você — começou falando em tom de conselho e acabou com um ar jocoso. Billy riu do comentário.


Billy propôs a Garrett, o piloto e dono do Wild Bird, fazer parte da sociedade com ele no bar. Comentou até estar propenso a dar o nome da aeronave ao estabelecimento. Billy, que se dizia mais bonito, ficaria no balcão; como Garrett sabia ser mais gentil com as pessoas, trabalharia de garçom e serviria às mesas. Essa foi a piada. Garrett era da igreja, o único do grupo que não bebia e mal frequentava bares — só quando havia algum aniversário ou evento muito especial. Não gostava do ambiente: lembrava seu pai. Diversas vezes, quando mais jovem, teve que buscar seu “coroa” a mando de sua mãe em lugares desse naipe e sempre o encontrava bêbado. O pai acabou deixando ela e o menino sozinhos (e, várias vezes, a agrediu, assim como fez a ele, que tinha algumas marcas guardadas pelo corpo). Na pequena congregação da qual fazia parte, o piloto inclusive dava uma de pastor; às vezes pregava. Quaid fez um sinal recriminando Billy por fazer aquele tipo de brincadeira. Já ele, que não se importava com nada (na verdade, Garrett também não ligava pras coisas que Billy dizia, sabia como o amigo era fanfarrão), depois de contar sobre seus planos, pôs a mão no bolso e entregou a Quaid duas notas de vinte dólares. Todos se espantaram com aquele gesto. Billy lembrou que ficara devendo ao amigo depois que foram ao Bell’s da última vez. Queria deixar tudo quite na volta ao continente. Cada um ali achou estranho ele fazer aquilo, afinal, Billy sempre estava duro. Só gastava com sua própria bebida e mulheres. O curioso é que, perguntado como abriria o bar sem dinheiro, dizia ter juntado algum.


— Deve ter ganhado numa daquelas máquinas que ele vive jogando no cassino — zombou Kruger.


Fazendo esse comentário a respeito do gesto incomum do parceiro, Kay, com também chamavam Kruger, girou a alavanca da porta. Ele completou rindo, enquanto o vento soprava para dentro do avião, não ser aquilo um bom sinal. Então, ergueu completamente a abertura (que, no Bird, precisava de um pouco mais de força para ser levantada) e observou a terra lá embaixo.


— Você arrumou esse avião inteiro e não deu jeito nessa porta, Garrett?


— Ficou faltando só isso. Mas é simples. É só pôr um pouco de óleo no trinco. Quando pousar, antes do próximo salto, faço isso — tentou se consertar o piloto.


Pisando sobre a placa soldada no trem de pouso, em cima da roda, Kruger já estava praticamente inteiro fora da aeronave. Agarrando-se ao suporte da asa, virou-se para falar ao grupo mais alguma coisa antes de se projetar no ar. Phill percebeu naquele momento algo estranho no paraquedas dele; tentou lhe dizer algo. Não deu tempo. VRUUMMM! Kay simplesmente de-sa-pa-re-ceu! Foi arrancado da aeronave como uma bola de baseball arremessada para fora do estádio! Ouviu-se um barulho grande vindo da parte de trás do avião. Como se algo tivesse partido. Kruger devia ter batido com força no leme ou no estabilizador traseiro e alguma coisa pareceu se romper. O espanto invadiu o cubículo do Wild Bird com todos querendo entender o que havia se passado com Kay. Billy, que ainda estava sentado e devia estar olhando para os fundos da aeronave pensando no seu bar, começou a gritar: “O que foi?! O que foi?!” O Cessna, parecendo sem controle ou por alguma ação imediata de Garrett, fez um arco no céu para cima, girou, ficando de cabeça para baixo, e embicou na direção do solo. De dorso no ar, o monomotor virou um foguete.


Quaid e Phill, assim que o Wild Bird sofreu a avaria e subiu — após Kruger evaporar — foram jogados com força para o fundo do avião. Pareceram empurrados por uma locomotiva! A gravidade os prendeu à parte de trás do pequeno Cessna e seus corpos formavam uma cruz, Quaid meio em pé colado na parede, onde havia uma rede pregada com algumas bolsas e mochilas (o que amenizou o impacto), e Phill sobre ele na horizontal. Billy ficou preso pelo cinto. Não sabia o que fazer. Ninguém sabia o que fazer! Também não conseguia se mexer direito. Nenhum deles! Na frente, Garett tentava controlar a aeronave puxando com toda força o manche. Foi quando o avião fez o giro e desceu. Todos foram jogados para frente outra vez, deslizando pelo teto e indo parar no cockpit do piloto: amontoados ao lado dele e em cima dele! Garrett precisou se desvencilhar de Phill, cuja perna bateu em seu pescoço, indo cair no seu colo e também sobre o painel. Era um pânico geral!

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Quatro dias antes, na quarta-feira, quando o grupo deixava a plataforma onde todos operavam e cruzava as águas tranquilas do Caribe dentro do helicóptero, Quaid comentou sobre o presente de Sarah, sua filha de sete anos. A menina queria muito ganhar um cachorro; o aniversário dela estava chegando; a festa aconteceria no próximo sábado. Quaid, ao partir da última vez para o mar, sabia que a data aconteceria assim que voltassem. Pôde conferir isso no calendário pregado na porta da geladeira em sua cozinha onde ele mesmo deixou um bilhete anotado com letras garrafais vermelhas: “SARAH! PRESENTE! NÃO ESQUECER!” Por isso, nos tempos vagos durante o trabalho, fez questão de procurar na internet onde podia comprar um belo dálmata! Esse era o desejo da menina (ela decidiu isso após assistir o filme 101 dálmatas com o pai três meses atrás). A pequena Sarah fez questão de cobrá-lo quando se viram pela última vez: ali, bem na cozinha. Desceu as escadas correndo com a mochila da escola nas costas para poder vê-lo antes de partir. Ela sentia muitas saudades do pai. Era muito apegada — assim como ele à filha. Quaid era viúvo. Cuidava dela quase sozinho. Contava com a ajuda da irmã . Quando precisava viajar a trabalho, ela ficava com a sobrinha. Era o braço direito dele.


A jovem, nesse dia pela manhã, foi voando até o pai enquanto ele tomava café. Sarah lhe deu um forte e tenro abraço. Quaid a levantou nos braços e pediu-lhe dois beijos: um em cada bochecha. Fazia isso sempre. Ele a chamava de “Boneca”. Ela disse que só acataria seu pedido se ele não se esquecesse da promessa que havia feito lá atrás — uma semana após assistirem o filme, ela já estava com a ideia fixa de ter um cachorro na cabeça. Insistiu até dobrar o pai. Por essa razão Quaid queria resolver isso assim que pisasse em terra, antes mesmo de ir para casa. Chegariam no fim da tarde naquela quarta na base em Texas City e ele teria até o sábado, data confirmada para a festa, para aparecer com o cachorro. Quando Kruger sugeriu de eles saltarem na sexta, Quaid lembrou seu compromisso com a filha. Kruger ainda lhe perguntou por que ele não havia pedido para a irmã resolver isso enquanto estava em alto-mar.


— Ela já me ajuda bastante cuidando todo mês da Sarah enquanto eu não estou em casa. Não quero sugar ela mais ainda. Isso é missão minha” — Sarah era mais importante do que tudo para aquele pai zeloso (Quaid tinha inclusive combinado com a irmã que levaria um dia a mais para chegar porque havia, enfim, achado o sonhado dálmata da filha. Ele precisaria fazer uma rápida viagem assim que pusesse os pés em terra, mas voltaria na quinta).


Quaid brincou com os amigos no helicóptero que só pensava naquele cachorro. Escutando ele falar isso, Billy disse ouvi-lo latir certa noite enquanto estava dormindo no quarto. Devia estar sonhando com o tal peludo. Sua filha pediu que ele encontrasse o cãozinho com mais pintas, essa era a condição. Billy, como sempre brincando, sugeriu que Quaid comprasse um hamster ao invés de um cão:


— É mais fácil de encontrar e é mais barato. Além disso, já viu o tamanho que um dálmata fica?! Vai morder tudo na sua casa, seu sofá, o controle-remoto, sua bola de futebol, até suas bolas! — Todos riram — Vai virar tudo de cabeça pra baixo, cara! Agora, um hamster nunca vai dar trabalho. Eu dei um pra minha sobrinha. Sua filha vai se amarrar! Só precisa ter cuidado quando for cozinhar alguma coisa no forno. Eles gostam de ficar lá porque é quentinho. Meu vizinho torrou o da filha dele sem querer. 


Perto de o helicóptero pousar na base em Texas City, Quaid pediu para Kruger abaixar a música tocando na sua caixa de som (tocava “Hard as a Rock”, do AC DC, a preferida dele sempre que iam saltar) e lembrou os amigos da festa dali a dois dias. Reforçou o convite, ninguém podia faltar. Tinha comprado um MacAllan 18 anos que estava há dois meses intocado no bar de sua sala. Iria abri-lo durante o churrasco para festejar com eles. Mal desceu do helicóptero, se despediu de Billy (que morava em Texas City mesmo) e pegou sua caminhonete no estacionamento com os outros dois amigos. Tomou, então, a estrada para o norte, seguindo rumo a Houston, onde ficava sua casa e Phill também morava (Kruger sempre aproveitava a carona para descer na entrada de La Porte). Já em Houston, Quaid deixou Phill perto de casa e foi direto, sem passar na sua, para San Antonio onde esperava achar o dálmata.


Quaid havia marcado com uma senhora dona de um canil especializado em criar essa raça numa pequena comunidade próxima de San Antonio. O lugar ficava a pouco mais de 250 km de Houston, o que dava umas três horas de carro. Pelas fotos e vídeos que recebera do animal, parecia perfeito. Com aquele detalhe especial, tinha que ser o próprio! Quaid o havia encontrado naquela semana mesmo, numa madrugada após cobrir seu turno no painel de controle. Nas suas buscas vasculhando a internet, demorando mais do que o esperado, chegou a pensar que deixara para muito em cima do aniversário da filha. Felizmente, na última hora quase, conseguiu encontrá-lo. Sem sono aquela noite, Quaid resolveu malhar na academia antes de retornar para o quarto. Tomou um banho e resolveu dar mais uma olhada na internet. Foi a sorte dele.


Ele chegou à loja quando já estava fechada. Até chegar à cidade e achar o endereço, ficou bem tarde. Mas a senhora o estava aguardando; sabia que ele devia demorar por causa das condições que explicou ao telefone por conta do trabalho. A dona o deixou entrar no canil e lá Quaid pode ver finalmente o tal bicho. Era um cachorrinho bem simpático! Macho. Não tinha tantas pintas ainda. A dona explicou que elas só surgiriam depois de algumas semanas. Chamava a atenção, entretanto, uma marca escura e grande num dos lados do rosto pegando o olho e sua orelha direita. Isso o tornava diferente, mesmo dos outros dálmatas (alguns ali seus irmãos, filhos de uma ninhada recente). Aquele detalhe diferente foi o que atraiu Quaid. Era bem novo. A julgar pela mãe e o pai — a dona mostrou os dois a ele — devia virar um belo exemplar da raça. De fato, ele concordou, eram cães bonitos e esbeltos — e ambos repletos de pintas.


Quaid não precisou pensar muito. Fechou negócio com a senhora por um preço que considerou razoável e levou o mascote numa caixa daquelas de carregar animais de cor amarela (a preferida da filha), comprada ali mesmo na pequena loja com artigos de pets à frente do canil. Pôs o dálmata no banco do carona de sua caminhonete e, como Quaid estivesse cansado, seguiu para Houston, mas “sugeriu” à sua dupla parar num hotel no meio do caminho. Quaid foi simpatizando com o cãozinho e batendo altos papos com ele ao seu lado no carro e depois no quarto.


Como Quaid o deixou solto durante a noite, o bicho acabou urinando no carpete. Ele teve que limpar aquilo esfregando o sabonete do hotel e usando um pano que arrumou na recepção. Gastou metade do seu desodorante para tentar não deixar cheiro. Na manhã seguinte, pegaram a estrada e, por volta do meio-dia, chegaram em casa. Sarah estava no colégio, então, pôde mostrar o animal à sua irmã sem problemas. Ela o achou encantador. Lembrou-se do labrador que os dois tiveram quando crianças. Combinou de ela levá-lo para casa, já que, se ficasse ali, com certeza, Sarah o iria ouvir latir e descobriria tudo. Isso ia acabar com a surpresa.


Fazendo desse modo, no dia seguinte, sua irmã apareceu cedo para levar Sarah para um dia de princesa num salão de beleza e ela também escolher o presente que ganharia da tia. O dálmata estava escondido na mala. Quaid deu um jeito de pegá-lo sem a filha perceber e o escondeu dentro de casa quando ela já estava saindo. Felizmente, o tempo estava firme; faria um belo sábado de Sol. Com a ajuda de Phill, que chegou mais cedo, ele arrumou o interior da casa e o jardim onde aconteceriam o churrasco mais a festa com bolas e alguns enfeites pendurados. Um barbante trazia bandeirolas coloridas com as letras do nome da filha (pregando-as na árvore, enquanto subia a escada, Quaid queixou-se com Phill de uma leve dor no seu ombro esquerdo por conta de uma batida quando estava executando um serviço na plataforma). Ele separou uma mesa do lado de fora para pôr os copos e pratos com os quais as pessoas iriam se servir, pôs um isopor com as cervejas no gelo e outro com refrigerantes e sucos, recebeu a moça que trouxe um belo bolo que havia encomendado no dia anterior e acendeu, por fim, a churrasqueira. Logo sua irmã chegou com Sarah, linda, após um “banho” de cabelereiro e trajando um belo vestido azul escuro, enfeitado com centenas de bolinhas brancas, mangas bufantes e um babado na gola. Seu pai pôde, então, lhe dar o tão esperado presente.


Quando Quaid a levou até o quarto dela e a menina abriu a porta, deu de cara com aquele cãozinho todo branco como a neve e o rosto de duas cores. Sarah correu para vê-lo de perto, se sentou de frente ao bicho e, após observá-lo com atenção e curiosidade, lhe fez um carinho. Ele logo se afeiçoou à criança. Primeiro latiu, depois saltou em seu colo. A jovem, de imediato, amou o presente! O pai disse que, com o tempo, as pintas iriam aparecer ao longo do corpo, e Sarah disse que tudo bem; já gostava dele assim. Agradeceu-lhe com um forte abraço e mil obrigados. Ele pediu seus dois beijos tradicionais, um em cada bochecha. Recebeu uma sequência nas duas, uma rajada de bitocas. Perguntada por ele como o mascote se chamaria, Sarah pôs o dedo indicador diante dos lábios pensativa e, após ligar os pontos, não pestanejou:


— Já sei! TEXUGO!


— Texugo? — indagou o pai um pouco aéreo tentando entender o porquê daquele nome.


— Olha a cara dele, pai! Parece aquele texugo que vimos na estrada — Sarah se referia a um desses membros da família das doninhas e furões com o qual, no último feriado, quando Quaid e a filha viajavam para a casa da avó da menina, mãe da ex-esposa dele, no norte do Texas, tiveram a sorte de encontrar atravessando a via. O bicho parecia alheio ao movimento da estrada. Sarah o percebeu de longe. Quaid parou o carro no acostamento para mostrar o animal mais de perto à filha. Mesmo sendo reconhecidamente arisco, o que fez Quaid tomar o devido cuidado, o texugo se mostrou prestativo. Parou por alguns instantes para ser apreciado e fotografado por Sarah com sua máquina fotográfica de brinquedo que imprimia na hora fotos em preto e branco num pedaço de papel. Ela, pelo jeito, gostara do bicho. Guardara não apenas o nome da espécie como também suas cores — Tem tudo a ver!


De fato, Quaid concordou, o rosto meio claro, meio escuro se assemelhava ao do animal. Sarah tinha comentado com o pai outro dia numa vídeo-chamada quando ele ainda estava na plataforma que vinha pensando em Pongo ou Perdita (por causa do filme — estes são os nomes do casal de dálmatas na película da Disney). Nessa ocasião, querendo aumentar a surpresa, Quaid disse à filha estar bem difícil encontrar o presente dela, um dálmata do jeito que queria. Até perguntou num tom de brincadeira se servia um cachorro de outra raça, mas a menina, embora não tenha dito que não, pareceu ficar pouco contente com a ideia. Ele, de verdade, ainda não havia achado o cãozinho; continuava procurando sem parar. Por ter o bichano o rosto de duas cores, no quarto, diante de sua surpresa, ela pensou na hora em um nome que tivesse mais a ver. Lembrou-se do ocorrido no final de semana na estrada, daí... “Texugo!”


A tarde daquele sábado passou vibrante, com todos os convidados num clima amigável, cada um conversando ao seu canto. Uma parte era de pais dos colegas de Sarah, outra dos vizinhos mais próximos, havia os amigos de Quaid do salto e de outros lugares além de sua irmã com o cunhado e as duas filhas. Sua irmã acabou levando uma amiga solteira com o filho mais ou menos da idade de Sarah para apresentar a Quaid. Pensou que o irmão, sem estar num relacionamento sério desde a partida da esposa — ela havia falecido três anos antes de câncer —, talvez gostasse dela. Phill logo sacou o esquema e pôs pilha no amigo para ele dar atenção à moça. Era uma mulher bonita, parecia gentil. Lembrava inclusive sua ex-mulher. Os dois conversaram bastante. Pintou um certo clima.


Enquanto as crianças ficaram brincando correndo ao redor da casa, com Sarah carregando Texugo para cá e para lá, os adultos se dispersaram pelo jardim e pelos cômodos maiores. Kruger assumiu a churrasqueira. Era a praia dele: Quaid nem se deu ao trabalho de negar sua investida. Só disse um: “é toda sua!”. Quaid não havia economizado. Fora as saladas e petiscos que alguns levaram, tinha peças de frango, salsichas, legumes variados e uma costela de porco que deixaram curtindo na grelha, assando para a hora do jogo — com um pedaço de pão, bastante molho barbecue e cebola, daria um típico sanduíche texano.


Na TV, ia passar Longhorns contra Georgia. Quando a partida começou, um vizinho de Quaid se voluntariou para tomar o lugar de Kruger no fogo. Kay queria assistir ao jogo. Ensinou ao seu substituto como vigiar a costela que estava terminando de assar; logo ele vinha pegá-la. Vários homens foram para a sala onde ficava a TV. Quaid torcia para o Texas Longhorns, equipe onde havia jogado como running back na universidade. No meio do jogo, Phill sugeriu de eles saltarem no domingo à tarde. Todos toparam. Quaid falou que preferia curtir o dia com a filha e seu pet. Ela, com certeza, ia insistir para levá-la ao parque. Ele havia acabado de chegar do trabalho, seria melhor marcarem para a semana, terça seria bom. Phill, então, insistiu com ele para, no domingo mesmo, irem saltar. Lembrou que Sarah podia ficar como das outras vezes com John, o velho mecânico que morava nos fundos do aeródromo e tinha uma neta, um pouco mais velha do que a filha de Quaid. Ele fazia sempre isso. “Ela pode até levar o cachorro e se divertir naquele espaço gigantesco que tem lá”, sugeriu Phill.


Phill perguntou a Garrett se estava tudo certo com o Wild Bird. Ele disse que sim. O piloto enfatizou inclusive um detalhe novo na pintura do avião. Disse que ficara com um aspecto mais “selvagem” (Garrett era apaixonado por aquela nave. Já a tinha há anos). Quaid não se deu por vencido até Phill, de tanto insistir, propor uma aposta: a partida estava entrando no segundo tempo com ambas as equipes empatadas. Ele sugeriu que, se o time de Quaid vencesse, iam na terça. Caso perdesse, saltavam no domingo. Phill era bastante chato quando queria uma coisa. Então, Quaid, para poder se concentrar no jogo, aceitou a aposta. Apertaram as mãos, brindaram o copo com o MacAllan 18 e esperaram para ver o que o destino decidiria. O jogo seguiu disputado até o último lance: 21 a 21. Um chute decisivo no final para Georgia acabou selando o resultado. Como seu time perdeu, Quaid não teve outra escolha a não ser fazer a vontade do amigo insistente e saltar no dia seguinte.       


No domingo, todos se encontraram no início da tarde no hangar do aeródromo. Quaid deixou Sarah com John que, mais uma vez, não viu problema em ficar com a filha do amigo. Já o conhecia há bastante tempo. Ele até achava bom quando fazia isso por ser uma companhia para sua neta. Sarah levou, obviamente, o animadoTexugo, o que se tornou mais um motivo de alegria. Quaid, Kruger, Phill e Billy pegaram nos armários cada um seus óculos, altímetros e puseram nas costas o container — a mochila com o paraquedas; cada um tinha o seu. Só Kruger não achou o dele; acabou caçando outro no alojamento. Phill foi o único a vestir um macacão, um traje amarelo que tinha mandado fazer personalizado com seu nome. Também pôs o capacete com a câmera para filmar o salto. Feita a checagem do equipamento, todos seguiram para o Bird. Kruger correu para a aeronave e encontrou a mesma com o motor já ligado. Billy fumava um último cigarro na porta. Por conta de não encontrar o paraquedas com o qual sempre saltava e deixava já dobrado, para não demorar mais, pegou um equipamento que encontrou de um conhecido dele que parecia seguro e correu para a pista.


Todos acharam o novo detalhe na pintura do Bird empolgante. Nas palavras de Billy: “Era o que faltava!” Tratava-se de um modelo Skylane 182 com o trem de pouso rebaixado. Sendo todo ele bege com o capô marrom e faixas onduladas também dessa cor nas laterais e no leme, Garrett mandou acrescentar, na parte frontal, onde ficava o motor — o nariz do bicho —, o nome Wild Bird em letras cursivas. Fez isso de um dos lados da aeronave. Do outro, pôs uma bonita arte de um condor sobrevoando uma serra com nuvens encimando as montanhas e o Sol surgindo por detrás delas. Segundo ele, viu esse desenho num caderno de seu filho que recentemente havia voltado de uma viagem aos Andes (Garrett, mais jovem, havia também viajado à América do Sul como missionário, morando dois anos no Peru. O filho também esteve lá para apoiar o trabalho de uma igreja). Ele também escreveu na fuselagem, sob as asas, o nome do avião em letras grandes. O grupo entrou na aeronave e Garrett começou a taxiá-la na pista para decolar. Billy, o primeiro a entrar, se colocou bem atrás do banco do piloto. Quaid se pôs ao lado dele e Phill, à frente de Quaid. Kay ocupava o local do co-piloto mais próximo da porta (o controle do manche e a poltrona ali haviam sido retirados, liberando mais espaço). Garrett fazia questão de deixar a velha bola rasgada de tênis (esporte que praticava e havia pegado num torneio do US Open), presa à alavanca do manche no lugar do controle. Com o Wild Bird alinhado, o avião acelerou e tomou o rumo do céu completamente azul aquele dia.


A subida foi tranquila até alcançarem o nível de voo um-dois-zero, equivalente a 12 mil pés — cerca de 3.650 metros. Garrett içava mais o Bird para fazer a vontade dos amigos. Essa era a altitude de onde preferiam saltar por permitir a eles atingirem perto de 200 km/h em queda livre e voarem por quase um minuto antes de planar sob um velejo mais lento debaixo do paraquedas (eles já nem pediam; o piloto conhecia o caminho quando o ponteiro alcançava os 10 mil).


No trajeto para o alto, o grupo foi relembrando os vários momentos passados no churrasco, alguns engraçados como quando Phill deixou seu MacAllan na mesa enquanto foi ao banheiro. Dona Lucy, uma senhora mais velha e bastante prestativa vizinha de Quaid, passando pela sala e vendo um dedo só naquele copo, achou que era a sobra do refrigerante de alguma criança. Ela o levou para a pia e o deixou separado para ser lavado. Quando Phill voltou para o recinto, deu falta do whisky. Ele vasculhou todos os cantos para saber onde o puseram. Phill o encontrou na cozinha; pensou tê-lo salvado. Todavia, ao provar a bebida, Dona Lucy já havia deixado cair sabão dentro dela. O falastrão Phill perguntou a Quaid se ia rolar com a amiga de sua irmã com quem havia conversado. Afinal, ela se demorou a ir embora. Chegou a sentar ao lado dele durante o jogo por um período inteiro: Phill fez questão de notar isso: “Ela disse que curtia futebol e também torcia para os Longhorns.” Já Billy elogiou a costela de porco. Ficara, de fato, bastante suculenta — todos rasgaram elogios. Kruger enfatizou na hora ser, evidentemente, por causa do cara pilotando a churrasqueira: ele, claro!


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Aproximando-se da área de fazendas sobre a qual, em geral, preferiam executar o salto, Kruger aprontou-se para ser o primeiro a se lançar para fora do avião. Phill e Quaid também se levantaram. Phill seria o segundo a partir. Ao abrir a porta do lado direito, Kruger percebeu o problema antigo na maçaneta do Bird que, às vezes, emperrava, precisando de um jeito especial para destravar. Ele reclamou com Garrett, que disse ter esquecido de reparar esse defeito. Mas, segundo ele, era só pôr um pouco de óleo no trinco que já resolvia. Com a porta levantada, Kay projetou os ombros e a cabeça para fora a fim de sentir o vento na pele. Ficou aguardando o sinal do piloto. Foi quando Billy, ainda sentado, sacou do bolso as notas de dólar e entregou a Quaid. Ouvindo aquilo e achando graça, como todos os demais, Kruger fez o comentário em tom de brincadeira sobre o tal gesto: “Billy aparecendo com dinheiro... isso não é um bom sinal”. Quando Garrett deu o comando, Kruger pôs o pé direito sobre a pequena plataforma soldada em cima da roda e se colocou completamente fora do avião. Daquele ângulo, ele ficou de costas para Phill. O parceiro, então, notou em seu boc (a base do container) o punho muito exposto e o piloto do paraquedas projetado demais para fora. O punho é o mecanismo de acionamento do velame. Ao puxá-lo, ele saca o piloto (uma espécie de paraquedas menor que infla ao ser lançado no ar) e este, por vez, retira com força a bolsa onde o paraquedas principal fica acondicionado na mochila. As cordas, então, se desfazem no ar e o conjunto todo abre. O piloto de Kruger estava mal arrumado, aparecendo além do que devia.


— Ei, Kruger! Volte! — Ao falar para ele retornar depressa ao interior da aeronave para ajeitar o equipamento — pois um acidente grave poderia acontecer — não deu tempo. O piloto dele simplesmente foi puxado pelo vento! O paraquedas foi acionado ali mesmo, na saída do avião. Kruger foi ejetado do Wild Bird como se estivesse sendo sugado por um tornado!


Ao deixar o avião daquela forma inesperada, Kay chocou-se com extrema violência no estabilizador traseiro. A batida quebrou um dos profundores. Por causa disso, o Wild Bird perdeu a direção e Garrett, totalmente o controle. Tentando guiá-lo e entender o que houve, o avião subiu cerca de cem metros, fazendo um arco no ar. Aí, começou a cair.


Nessa subida forçada, Quaid e Phill foram jogados abruptamente para a parte detrás do Cessna. A batida, mesmo arrefecida pelas mochilas existentes ali, machucou o ombro ainda dolorido de Quaid. Billy, que ainda permanecia com o cinto, ficou preso ao piso da aeronave no mesmo lugar. Enquanto o avião subia, Phill, atochado pela força da gravidade contra o companheiro atrás dele, tentava compreender o que estava acontecendo. Todos tentavam. A resposta que vinha era um branco total; um espasmo! Quando o avião embicou para o solo, ele e Quaid foram jogados para frente novamente. A manobra brusca fez o avião ranger parecendo que a fuselagem ia se romper. Como o Wild Bird virou por completo e se pôs de dorso, os dois deslizaram pelo teto, passando por cima de Billy e caindo na parte da cabine. Quaid caiu ao lado de Garrett onde não havia o banco, mas Phill se chocou com piloto. Garrett precisou empurrá-lo para o lado a fim de conseguir ver novamente o painel e agarrar o manche. Foram segundos tensos. Aliás, qual segundo não passou a ser?!


O Cessna possuía 11 metros de envergadura, altura de 2 metros e oitenta centímetros do trem de pouso à asa (fixa na sua parte mais alta com um suporte de cada lado) e um comprimento de quase 9 metros da ponta do nariz até o leme, na extremidade da cauda. O espaço interno não era muito grande; compreendia muito menos do que isso (o avião era projetado para caber o piloto e três passageiros sentados, contando-se já a poltrona do co-piloto). O Wild Bird, para melhor acomodar os paraquedistas, só possuía o assento de Garrett. Daí, se pode imaginar a confusão e o estado de loucura dos quatro habitantes restantes naquela aeronave sendo arremessados como bolas de gude dentro de um liquidificador ligado, de um lado para o outro num espaço pouco maior do que o interior de um Ford Landau.


Tentando executar todo tipo de ação para retomar o prumo da aeronave e nada parecendo funcionar, Garrett observava o altímetro despencando num ritmo mortal. Voavam sem destino pelo céu do Texas. Ele precisava segurar o avião para não deixá-lo embicar. Fazia isso com o Wild Bird de cabeça para baixo. O normal seria o Cessna, um modelo de fácil maneabilidade usado para treinamento, normalmente, se ajustar no ar. Mas isso não acontecia. Queria, a todo custo, apontar para o chão.


Billy, desesperado, soltou seu cinto bem na hora em que, realizando uma manobra, o avião fez um giro de 360°. Rodou no ar para a esquerda e voltou à mesma posição. Billy acabou rolando às cambalhotas para a porta (que, no Cessna 182, fica praticamente ao lado do piloto). Lá já estavam Quaid e Phill. Com todos aqueles rodopios, a porta batia e abria, batia e abria. Ele deu um encontrão nos companheiros e, “ricocheteando” neles, rolou e quase foi cuspido da aeronave. Conseguiu no último instante se segurar. Da cintura para baixo, seu corpo permaneceu dentro do Bird; do tronco para cima, fora. Como estivesse de costas para a cabine e envergado na porta, não podendo assim se segurar na haste de sustentação da asa, não conseguia encontrar uma posição. Agarrando-se a uma protuberância da fuselagem pelo lado de fora, conseguiu, apoiando seu joelho, se aprumar. Praticamente engatinhando, gritou para os outros que iria saltar e avançou sobre a porta aberta do lado externo. Ficou sobre ela e se jogou. No ar, contou “Um 1.000, 2.000, 3.000, 5.000” e abriu o paraquedas. Garrett, percebendo a gravidade da situação, a pane total, ordenou aos outros dois que também saltassem. Que deixassem o avião como fez Billy para salvar suas vidas:


— Vão! Saiam logo! Saltem! Vocês têm paraquedas! — embora não houvessem brifado um plano de emergência, era claro o que precisa ser feito.


Quaid mandou Phill, cuja posição era mais propensa para deixar primeiro a aeronave, chegar até a abertura e saltar. Ali, ele maldisse a aposta que fez com Quaid e forçou todos a saltarem aquele domingo; maldisse o próprio Wild Bird por ter voltado aquele final de semana do conserto; maldisse o paraquedas de Kay que foi mal acondicionado na mochila ou que por algum tropeço do próprio Kruger ficou exposto! Forçando o braço esquerdo para alcançar a porta nivelada acima dele (já que o Bird continuava atravessando os céus de cabeça para baixo), Phill conseguiu segurá-la com uma das mãos. Fazer aquilo com o avião balançando daquele jeito e ainda de dorso era bem dificil! Garrett, sentado literalmente acima dos dois, preso no assento, conseguiu virar a aeronave um pouco. Não para ajudá-los; foi um acaso. O jato ficou meio de lado. Isso deu um certo empurrão para Phill, que se aproximou da abertura. Era uma luta brutal do piloto contra a natureza. Tudo o que estava fazendo era tentar nivelar o avião. Voando a 150 nós com o estabilizador danificado, parecia uma missão impossível (até porque Garrett não tinha certeza do que havia acontecido após o choque de Kruger. Possuía apenas uma suspeita). Phill esticou o outro braço até pôr sua mão direita na porta. Feito isso, pôde puxar com mais força todo o corpo. Agarrado rente à abertura do Cessna de joelhos, se pôs como podia agachado (com as botas no batente superior) e, empurrando seu corpo o máximo que podia para fora, se levantou, dando um passo sobre a porta, mais outro e um impulso. Phill escapou, se lançando ao vento e abrindo o paraquedas logo em seguida. Estava ainda a 8 mil pés. Ele pouco se importou em olhar o altímetro. Ao deixar o Bird e tomar uma certa distância, seu próprio instinto de sobrevivência puxou o piloto. Quaid e Garrett seguiram em frente:


— Vamos, Quaid! Agora é você! Vai! Vai! — atestando que Phill conseguira sair, o piloto mandou o último deles fazer o mesmo.


— E você?! O que vai fazer?! Cadê seu paraquedas? Você tem que saltar também!


— Eu não pus ele. Que droga! Esquece! Eu vou tentar aterrissar esse avião. Você precisa se salvar!


— A gente tá despencando, Garrett! Não vai dar! Enloqueceu?!


— Eu vou conseguir! Eu vou conseguir! Mas você tem que sair. Vai, cara, sai daqui!


Com o Bird à toda velocidade, de repente, por conta de uma rajada forte de vento, o avião começou a girar. Fez uma, duas, três voltas. Um verdadeiro parafuso no ar! Eles podiam escutar a carcaça “desparafusando”! Por mais forte que aquele Cessna fosse, ele havia atingido seu ponto crítico e ultrapassado a velocidade máxima de manobra e também de cruzeiro. A qualquer instante, podia não mais resistir. A fuselagem ia ceder e as asas se partirem em pleno ar. No meio daquele redemoinho, Quaid agarrou-se ao assento de Garrett, tentando não ser jogado para um canto qualquer ou ser cuspido de qualquer jeito para fora. Quando parecia que novamente ficariam de cabeça para baixo, o Bird completou mais metade de uma volta e parou na posição normal. Finalmente, algo bom. Quaid ajeitou-se como deu:


— Garrett, esse avião não vai aguentar!


— Não sei como ele ainda se partiu!


Olhando para os fundos do Cessna onde havia aquela rede cheia de bolsas, Quaid perguntou ao piloto:


— Onde ficou seu paraquedas?!


— Eu deixei no hangar.


— Por quê?! Você sempre tá com ele. Que droga, Garrett! É o cara mais precavido que eu conheço.


— É o que estou me perguntando.


— E uma daquelas mochilas ali atrás, não é um paraquedas?


— Não sei. Acho que tem um aí sim. Um vermelho! Cara, mas você não vai conseguir pegar ele. Esquece, Quaid! Se salva!


— E você?! Ainda bem que esse avião é pequeno. Agora isso ajuda.


Graças a uma leve guinada proposital conseguida a todo custo por Garrett, o Wild Bird inclinou-se um pouco, o que ajudou Quaid a se locomover até a parte detrás. Ele aproveitou e correu até a rede o mais depressa que pôde, se jogando para agarrá-la. Garrett gritou para o companheiro: “Segura firme, Quaid! Vamos girar!” O avião, já inclinando, deu mais um 360° completo. Depois, voltou à posição em que estava: caindo, mas sem ficar novamente de dorso em relação à superfície. O problema foi a porta. Ela bateu e, dessa vez, trancou!


Na rede, Quaid localizou a única mochila vermelha no meio daquela bagagem. Como não conseguisse retirá-la pelos lados, lembrou-se do canivete suíço que sempre carregava consigo — um presente que sua esposa havia lhe dado quando estavam se conhecendo ainda. Quaid o sacou do bolso da calça e, com a lâmina, rasgou as cordas para pegar a mochila. Mal a apanhou do chão, sem sequer examinar, a lançou para o piloto:


— Garrett! Pega! — Quaid foi para a porta — Põe isso logo! Eu já tô aqui — Tentando abri-la, ela não destrancou.


— A porta não tá abrindo, cara!


— Balança o trinco dela. Força pra fora! ­


Quaid agitou a maçaneta tentando liberar o trinco, deu um murro na porta para fazê-la ceder, mas nada!


— ESSA PORRA... TEM... QUE ABRIRRR! — a porta continuou travada. Garrett, esticando o braço, tentou ele abri-la, mas não adiantou. No desespero, puxou um cordelete que pendia do alto, uma gambiarra que construíra para facilitar o travamento da porta quando todos os paraquedistas deixavam a aeronave e não havia como ele, sentado no assento do cockpit, se levantar para fechá-la. Na verdade, era apenas um meio de puxá-la. Depois tinha que rodar a maçaneta. Na hora, de alguma maneira, isso fez a porta ceder: “É jeito... sempre jeito!” — o piloto encontrou um meio jocoso de lidar com aquele momento tenso. Quaid empurrou toda a porta para fora e esbravejou: “Graças a Deus! Vem logo, cara!


A mochila havia caído ao lado do assento. Puxando-a com o pé direito e agarrando-a ao mesmo tempo em que segurava o manche, Garrett pôde conferir não ser aquilo o que esperava:


— Quaid, isso não é um paraquedas!


— O que?! Como assim? — Quaid olhou com um ar de sabotagem para o companheiro.


— A The North Face não faz paraquedas! — Garret disse isso se referindo ao logo bordado da marca de artigos outdoors percebido num local da mochila. Ela podia bem parecer um container (contando-se, claro, a pressa dos dois e o desespero em se salvar), mas, definitivamente, de dentro daquela mochila vermelha não sairia nenhum velame.


A esse ponto, os dois já estavam abaixo de quatro mil pés. Logo, ficariam a menos de um quilômetro do solo. Garret, ao manche, tentava imaginar uma forma de pousar; se é que fosse possível. Definitivamente, parecia não ser. O nariz do Wild Bird apontava para o que parecia ser um terreno descampado. Quaid, então, gritou da porta:


— Garret! Largue o controle! Só tem uma saída! — Eles iam saltar juntos!


Não vendo outro caminho, Garrett decidiu abandonar o leme e se levantar. Retirou o cinto e largou devagar o manche. O Bird permaneceu balançando. Por alguns segundos, parecia que continuaria estável. Ele não perdeu tempo. Caminhou cambaleando até o amigo diante da porta. Quaid afrouxou ao máximo os tirantes das pernas e mandou que Garrett encaixasse as pernas dele dentro dos mesmos.


— Tira seus boots! Não vai dar com eles — Garrett, já pensando nisso, sacou o par de calçados que tinha nos pés. Com muito custo, tentou descalço pôr sua perna direita por dentro do tirante totalmente alargado da perna esquerda de Quaid. Não conseguiu. Por mais que forçasse, não entrava!


— Tira as meias! Tira a calça! Tem que dar!


Garrett desafivelou o cinto para, o mais rápido que podia, se despir de seu jeans. Enquanto tirava de qualquer jeito a calça, um balanço súbito do avião o fez tropeçar. Quaid, que o segurava, o deixou escapar. Ele foi jogado para fora. Garrett cairia sem paraquedas não fosse conseguir se agarrar ao batente da porta no último segundo! Quaid o puxou para dentro. Aquilo foi um tremendo susto! Por muito pouco era o fim.


Só de cueca, o piloto forçou suas pernas para dentro dos tirantes de Quaid. Não dava tempo para Quais retirar também as calças, o que ajudaria de alguma forma. Ele precisaria antes sacar o paraquedas. Já estavam a menos de um quilômetro do solo! A superfície lá embaixo ficava cada vez mais perto! Com muito esforço, felizmente, conseguiu encaixar primeiro uma, depois a outra.


— Você vai fazer o mesmo com seus braços. Quando a gente se jogar, passa eles por dentro das alças e agarra com a sua alma os meus ombros. Não afrouxa por nada!


— Eu só te largo no chão, cara!


Em seguida, Quaid perguntou se o amigo estava pronto:


— Eu saio, você vem junto — Garrett deu um OK.


Quaid se mexeu para fora do avião junto com Garret. Segurando no suporte da asa para ter mais firmeza, os dois se apoiaram como dava pisando em cima da pequena placa de metal no trem de pouso: a ponta dos dedos dentro de uma meia branca furada do pé esquerdo de Garrett colados na ponta do boot do pé direito de Quaid. O medo deles era se chocar com a aeronave ao saltar. Não dariam o impulso devido por conta da posição dos dois. O avião estava sem comando. Caía depressa. Eles não tinham mais tempo. Nem para pensar! Contaram, então, até três para darem o máximo de galeio e se lançaram!


A dupla passou bem perto do leme. Mal puderam perceber que o profundor estava quebrado. Só se importavam com suas vidas. O avião já era! Garrett, segurando firme nas alças do container do parceiro, em pleno ar, passou rápido os braços entre elas para que o velame pudesse ser acionado. Dessa forma, no entanto, nem Quaid, numa primeira tentativa, nem Garrett, depois, conseguiram alcançar o punho de comando na base da mochila. Os braços entrelaçados coibiam os movimentos. Seus dedos ficavam a centímetros. O altímetro já registrava menos de dois mil pés! Quaid não exitou:


— Garrett, puxa você o reserva! PUXA O RESERVA! — era a única saída! O acionamento do reserva ficava no peito de Quaid e Garret conseguia alcançá-lo com sua mão esquerda antes de pôr o braço por dentro do tirante. Ele fez isso. Puxou! O velame abriu sobre os dois!


Garrett e Quaid suportaram a força do impacto ao desenrolar do paraquedas. Um não largou do outro. O reserva, felizmente, aguentou o peso de ambos. Parecia que iam se salvar. Depois de tudo, iam se salvar.


Os dois ficaram a observar o Bird cada vez mais longe. Àquela velocidade, o avião se chocaria contra o solo e viraria, provavelmente, um monte de pedaços. Garrett havia acabado de restaurá-lo. O piloto balbuciou um breve adeus com os lábios mordiscados pelo vento:


— Até logo, Bird...


Quaid disse ao amigo:


— A gente vai viver. Isso que importa. Você vai conseguir outro Bird. Nós vamos conseguir. Só não fica excitado com isso agora...  



* * *



Dias depois, no corredor de um hospital em Houston, Quaid e Jasmine, a amiga de sua irmã a quem ele havia sido apresentado no churrasco, esperavam para poder ver um dos amigos. Sabendo do acidente, ela decidiu lhe dar um apoio e ajudá-lo no que fosse preciso. Prontificou-se até a ficar com sua filha — e Texugo — da próxima vez em que tivesse que ir ao trabalho na plataforma. Quaid tinha ganhado uma dispensa. Mesmo sem ter se machucado, seu chefe disse que podia voltar quando o ombro estivesse melhor. Sofreu uma leve luxação.


Quem chegou logo depois e se juntou aos dois para a visita foi Billy. Tendo sido o primeiro a conseguir deixar a aeronave no fatídico dia, sendo quase cuspido do avião, ele chegou ao solo atordoado, mas também sem piores danos (há muitas léguas dos outros — levou um bom tempo até ser encontrado — mas sem danos). Phill também apareceu. Este quebrou o braço esquerdo na queda. Ele caiu sobre uma mata e acabou batendo forte o membro no galho de uma árvore. Já Garrett não apareceu. Billy perguntou por ele. Quaid disse que tinha ido resolver uma coisa urgente:


— Está buscando um meio de conseguir outro avião. O seguro vai ajudar.


— Posso dar uma mão de alguma forma. O bar pode ficar para depois — completou Billy.


— Então o papo do bar é sério?! Está com a grana mesmo? — perguntou Phill.


— Vocês acham que estou sempre de zoeira...


— Garrett falou que passaria aqui amanhã. A propósito, ele está nos esperando na igreja — os outros dois riram do que Quaid disse — Sério! Ele topa fazermos uma reunião lá em casa ou até no Bell’s para comemorar o fato de estarmos vivos, mas antes insistiu que eu convencesse vocês a participarem de um culto na congregação dele. Não custa nada. Acho que temos uma dívida com o cara lá de cima — Billy e Phill se entreolharam parecendo concordar. Phill comentou:


— Foi um milagre vocês conseguirem escapar daquele jeito. Mais um pouco... e adeus.

Naquele instante, uma enfermeira veio dizer que eles podiam ver o paciente.


— Sim. Só não foi maior do que com Kay.


Entrando no quarto, Billy foi logo perguntando:


— Pronto para saltar de novo, seu HARD AS A ROCK?!


Ao ser tragado pela abertura prematura do velame, Kruger foi lançado contra a parte detrás do Wild Bird, batendo fortemente suas duas pernas no estabilizador direito da aeronave. Ele quebrou na hora os dois joelhos e fraturou a bacia. Com o impacto e a dor, desmaiou em pleno ar. Por causa do choque, seu paraquedas principal não abriu totalmente. Kruger não morrera devido ao impacto com a aeronave, porém não resistiria à queda. Graças ao DAA, dispositivo de abertura automática que possuía, seu velame reserva, por conta da velocidade, abriu perto do solo. Por um milagre, ele não se enrolou com o paraquedas principal e conseguiu sustentar a queda. Kruger conseguiu pousar e acabou resgatado com vida. Quando achado por um fazendeiro, foi despertado pela lambida de um de seus cães. Adivinhe qual era a raça do cachorro. §



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QUEM
ESCREVE

O autor, ALLAN KRONEMBERG,

é jornalista, ex-militar e o criador

da marca NA FRONTEIRA. Desde novo,

Allan é aficionado por histórias

de exploradores, filmes de cowboy

e livros sobre os mais variados

temas e aventuras (com destaque

para as obras de Hemingway,

Jack London, os poemas de Bukowski,

frases de Twain e os contos hiborianos

de Howard - inclua as páginas de

"O tempo e o vento", de Érico Veríssimo,

nessa lista mais as notas pujantes de uma

canção do The Cult). Tornando-se

ele mesmo, pelos anos, um aventureiro,

Kronemberg sempre buscou na

natureza selvagem - e numa garrafa

de whisky, ele diria - a inspiração

para a vida e suas próprias estórias.

Foi dele a ideia de tornar

a NA FRONTEIRA, além de uma

grife de roupas, uma revista sobre

os mais diversos assuntos pertinentes

à rotina e aos gostos dos clássicos

aventureiros; homens e mulheres

com o espírito da tempestade

em seu sangue.

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