BOKKA, OS SHERPAS JAPONESES
- Allan Kronemberg
- há 3 dias
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Atualizado: há 2 dias

Caminhar pela reserva de Oze, no Japão, é uma dádiva por poder contemplar os pântanos repletos de flores e as colinas manchadas de neve ao redor. Entretanto, neste lugar, não apenas a natureza chama a atenção. Homens percorrendo as trilhas com pilhas imensas de caixas nas costas fazem qualquer turista ou mochileiro se espantar. Eles são os incansáveis
CARREGADORES BOKKA DE OZE

apão. Um país conhecido pelo seu alto padrão de tecnologia e eficiência. Também uma nação orgulhosa de suas tradições. Nesse arquipélago, a terra dos megabytes e samurais onde, muito antes de se ouvir falar na Europa e nos Estados Unidos em inteligência artificial, robôs já eram idealizados e construídos, em Katashina, na província de Gunma, todos os dias, Norihito Ishitaka percorre o caminho até um povoado entre as montanhas de Oze para levar, nas costas, quilos e mais quilos de mantimentos. Um trabalho puramente braçal. Diante do cenário extremamente moderno, repleto de drones, dos dias atuais, tal ofício soa até estranho — principalmente se tratando dos japoneses. Ishitaka, em pleno 2025, é um elo, por assim dizer, entre o passado e o presente. Entre os que trabalham dentro daquele lugar isolado e o que vem de fora. O meio que os comerciantes locais possuem para não lhes faltar coisas simples como vegetais frescos, carne, cerveja ou aquele produto tão desejado comprado na última semana no site da “Shopee”. Norihito Ishitaka é um dos chamados bokka.
Ishitaka (visto na primeira imagem a caminhar de óculos e braços cruzados pela trilha) é um dos sete bokka que hoje se apresentam no parque de Oze e têm o trabalho de abastecer todos os lodges no interior da reserva. Os bokka, em suma, são carregadores — a palavra japonesa que os define significa isso, “carga à passos”. São trabalhadores que desafiam as leis do próprio corpo para suportar sobre os ombros pilhas de caixas com alimentos e bebidas maiores do que eles próprios e pesando acima de 90 kg (a figura de um bokka é facilmente distinguida na trilha: um sujeito com uma "mochila" de mais de dois metros sobre a cabeça). Seu esforço serve para levar suprimentos necessários aos mais de dez alojamentos remotos nas colinas e pântanos do Parque Nacional de Oze, a 150 km ao norte de Tóquio. Esses abrigos dependem deles para oferecer comida, acomodações e conforto aos inúmeros visitantes do parque.
Oze consiste uma extensa área coberta pelos pântanos elevados de Ozegahara e o lago Ozenuma situada num imenso vale cercado por montanhas com cerca de 2 mil metros entre as prefeituras de Gunma, Fukushima, Toshigi e Niigata. É a maior área pantanosa de planalto do Japão, um destino popular para trilheiros, escaladores e entusiastas da natureza. Ela possui uma vasta flora, com suas calêndulas-dos-pântanos e lírios-de-um-dia amarelos florescendo durante a primavera e uma vibrante tapeçaria de cores ao chegar do outono: o que atrai os milhares de turistas. Esse parque representa um forte exemplo dentro do Japão, um país muito ligado aos costumes antigos, de conservação. Oze possui em torno de 65 km de passarelas construídas para proteger seus frágeis pântanos de turfa. Seus dirigentes também fizeram interromper a construção de usinas hidrelétricas que represariam as fontes de água da região e se opuseram ao desenvolvimento de estradas cortando o parque. Sendo assim, o caminho para que o governo dispusesse de uma maior infraestrutura em Oze para os visitantes e os empresários pudessem manter os chalés funcionando dentro da reserva se deu por meio unicamente dos bokka.




Os bokka, é bom se dizer, não surgiram em Oze. Eles teriam aparecido no século XVII, durante o período Edo no Japão, quando havia uma grande necessidade de transporte de mercadorias à localidades rurais do país. Hoje, em Oze, os bokka utilizam uma estrutura simples de madeira semelhante à uma escada parecida às antigas cargueiras de seus antepassados (os dois modelos são mostrados ao lado). Ela chama-se shoikko. Há, inclusive, um curso a ser feito para poder usá-la antes de se tornar um bokka. Dependendo do nível, o carregador pode escolher um shoikko menor ou outro maior capaz de suportar mais peso. Os bokka só precisam dessa ferramenta para realizar seu trabalho. Cada um deles amarra as caixas de papelão uma sobre a outra apoiadas nessas arestas de modo que o centro de gravidade do conjunto fique numa altura ligeiramente acima da nuca. Isso não seria o ideal ao se arrumar uma mochila (onde o centro deveria ficar no meio das costas), contudo, é o mais próximo que conseguem disso diante de tanta tralha para levar. A mochila deles mesmos, com objetos pessoais, vai pendurada no alto da pilha de caixas.
Antes de partir, cada bokka examina as caixas e toma o cuidado de empilhar as mesmas alternando os pesos e formatos para manter o equilíbrio. Se forem arrumadas de modo errado, num ângulo mais propenso a se inclinar para um dos lados, para frente ou para trás, isso não só irá gerar um maior desconforto e carga sobre as costas, como também os deixará mais sujeitos a cair durante o trajeto; o que não é nada recomendável. Por essa razão, eles passam cerca de quinze minutos pelo menos descobrindo a melhor maneira de organizar todo o lote antes de partir. É como assistir a alguém montando um quebra-cabeça.
Os bokka são essenciais para os esforços de conservação da reserva natural de Oze, reduzindo a necessidade de helicópteros para atender os alojamentos. Originalmente, eram utilizados cavalos para transportar as mercadorias. Preocupações ambientais, no entanto, forçaram a substituição dos animais pelos carregadores na metade do século passado. Essa mudança coincidiu com a introdução no parque, em 1955, das passarelas de madeira visando a evitar danos maiores ao habitat causado pela passagem constante de pessoas adentrando os pântanos. Embora os helicópteros sejam utilizados para entregar materiais não perecíveis ou mais pesados como combustíveis e caixas de bebidas, suas viagens estão sujeitas às condições climáticas e restrições de programação. Já os bokka, a toda hora e sob qualquer tempo, estão disponíveis. E não há o que eles não possam se virar para pôr nas costas.
"FIQUEI ESPANTADO AO VER COMO HUMANOS CONSEGUEM CARREGAR CARGAS TÃO PESADAS" — ISHITAKA QUANDO SOUBE EXISTIR A PROFISSÃO DE BOKKA.

Presenciar um bokka caminhando sobre as palafitas de madeira erguidas rente ao pântano ou subindo as trilhas estreitas e rochosas nas colinas, sempre num ritmo cadenciado, um passo após o outro, chega a ser tocante. Caso o viajante já tenha ouvido falar dos sherpas do Himalaia, famosos por também levarem pesos enormes nas costas, a comparação com esses carregadores é inevitável. Para qualquer um acostumado a encarar montanhas com uma cargueira, ver um ou outro é algo motivante.
O maior peso que eu já devo ter levado numa trilha, com mochila, bornal e outros apetrechos, ou mesmo no Exército quando servi, subindo cotas com uma metralhadora MAG de mais de 10 quilos sobre os ombros mais os equipamentos, julgo, no máximo, chegar a pouco mais da metade do que os carregadores de Oze precisam aguentar. Entre abril e o final de outubro, na alta temporada, os lodges ficam abertos e apinhados de visitantes — alguns com mochilas grandes nas costas, mas nenhuma que se compare nem de perto à “cargueira” de um bokka. São necessárias inúmeras viagens para manter os chalés abastecidos. Cada um desses carregadores realiza, por seis dias na semana, uma viagem de ida e volta (às vezes, dois trajetos “bate-e-volta” por dia). Partem do Passo Hatomachitoge, onde a estrada pavimentava termina, descem por uma trilha íngreme na montanha por cerca de uma hora, atravessam os pântanos em duas horas de caminhada e alcançam os primeiros lodges. Até o anoitecer, retornam ao ponto de partida.
Quando realizam algum alto para descansar, os bokka permanecem com o peso nas costas, apenas buscando um lugar para se sentar e afrouxando um pouco as alças. Voltando ao trajeto, projetam a pilha para frente e se põem de pé novamente. Assim, avançam sempre com os olhos fitos no caminho para não perder o equilíbrio nem tropeçar em alguma pedra ou tronco. Falando nisso, o mal tempo não é empecilho. A neve pode esconder buracos, a lama, tornar a senda escorregadia e uma forte chuva atrapalhar a visão. Ainda assim, é preciso avançar. Tudo para alimentar o comércio local e receber um pagamento que varia entre 10.000 e 15.000 ienes — o equivalente a 370 e 550 reais por dia.
Segundo Ishitaka, carregar todo aquele peso exige certo preparo. A repetição torna tudo mais fácil. Mais do que força física, é importante ter uma tenacidade mental para vencer o cansaço e o peso da rotina. Avançar um metro por vez, uma légua após a outra pelos campos e montanhas, sem cessar e desafiando a gravidade. O corpo, em algum momento, pode sentir dor, os ombros ficarem dormentes, mas sempre é necessário prosseguir com os calcanhares firmes no chão. As pousadas e lugares isolados dentro da reserva de Oze — onde somente um homem a pé pode chegar — dependem de cada um deles para se manter.
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HELICÓPTEROS TAMBÉM SÃO UTILIZADOS PARA LEVAR CARGAS (E, NO PASSADO, CAVALOS TAMBÉM SERVIRAM ATÉ SEREM PROIBIDOS). PORÉM, O CLIMA E A PROGRAMAÇÃO AFETAM O USO DESSAS AERONAVES. JÁ UM BOKKA ESTÁ SEMPRE DISPONÍVEL.

Em média, um bokka carrega 75 kg por viagem, embora muitas vezes cheguem a transportar até 200 kg em dois trajetos somados (Ishitaka conta já ter precisado carregar de uma só vez 140 kg; ele pesa 70). Nas costas, vão itens de luxo, por assim dizer, para os hóspedes como, por exemplo, barris de chope. Cada um deles pesa até 25 kg. Apesar do esforço físico, Ishitaka diz que poder ver no rosto dos visitantes a satisfação ao pisar nos lodges é um sentimento ímpar. “Percebo sua gratidão, o que é bom. Posso ver que meu trabalho está ajudando outras pessoas, e tenho muito orgulho disso”. Ele é feliz pela tarefa de carregar a comida e bebida de todos. “Fazemos esse trabalho porque amamos Oze e sua natureza”, completa.
Nascido em 1988 em Osaka, Ishitaka trabalhou para uma empresa de mudanças após concluir o ensino médio. Mais tarde, obteve um emprego em uma cabana atendendo turistas no Monte Fuji. Ao ler, certa vez, um artigo na internet sobre o trabalho dos bokka na reserva de Oze, ficou impressionado com o peso que precisavam levar. Embora no Monte Fuji já houvesse necessitado transportar cargas de dezenas de quilos, aqueles carregadores pareciam o suprassumo da resistência. "Fiquei espantado ao ver como humanos conseguem carregar cargas tão pesadas", pensou Ishitaka. "Um raio percorreu minha espinha."
Ishitaka se voluntariou para trabalhar como um bokka em 2013, mas logo descobriu que o ofício era muito mais penoso do que imaginava. No início, vivia à base de analgésicos para suportar as constantes dores no quadril de ter que levar tanto peso para cima e para baixo. Com frequência, derrubava sua pilha de caixas, quebrando ovos e danificando legumes mais frágeis como tomates. Os carregadores mais experientes lhe deram força, ensinando alguns truques e incentivando-o a não desistir. Eles o acompanhavam na trilha para o ajudar, até que Ishitaka "ganhou casca" e tornou-se apto a desempenhar sua função sozinho. No outono de seu primeiro ano como bokka, tomou a ardente decisão de seguir naquela profissão. É o que ele deseja fazer pelo resto da vida. Há mais de dez anos, Ishitaka percorre as trilhas de Oze do final de abril ao final de outubro.
Como, fora da alta temporada, não há grandes tarefas para os bokka, eles precisam arrumar um meio de sobreviver até o ano seguinte. Para aumentar sua renda, Ishitaka faz alguns biscates e transporta equipamentos pesados em áreas montanhosas para construção de torres de transmissão de energia, pesquisas geológicas e outros projetos. Ele continua a pegar pesado. Isso até precisar voltar para os pântanos de Ozegahara.

Como não poderia deixar de ser, os japoneses, apaixonados por eletrônicos, tinham que inventar um jogo de videogame inspirado nos carregadores bokka. Chama-se Death Stranding e já possui duas versões (imagem menor acima). O game, criado por Hideo Kojima e viral na internet, se passa num mundo pós-apocalíptico em que a personagem principal, o herói personificado pelo jogador, chama-se Sam Porter e é um entregador que precisa percorrer longas distâncias a pé com cargas extremamente pesadas. Para tal, ele usa um exoesqueleto que o ajuda a percorrer os longos trechos. A carga que ele precisa levar na tela do jogo parece irreal, mas, na realidade, é uma verdade na vida cotidiana dos bokka. Trata-se de mais um daqueles exemplos da arte, de certa forma, imitando a vida. §

"FAZEMOS ESSE TRABALHO PORQUE AMAMOS OZE E SUA NATUREZA", AFIRMA ISHITAKA. SOBRE OS HÓSPEDES, ELE DIZ: "PERCEBO SUA GRATIDÃO, O QUE É BOM."
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