YAKUTIA } NA TERRA DO SENHOR DO FRIO
- Allan Kronemberg
- 20 de jul.
- 15 min de leitura
Atualizado: 11 de ago.

Qual foi a sensação de maior frio pela qual você já passou? Mas, veja bem, não quero me referir a alguma escalada em grande altitude ou aventura num ambiente isolado na natureza. Digo vivendo uma rotina normal, estando numa cidade ou vila do interior. Pois bem, imagine viver em um lugar onde sair à rua exige se vestir com quilos de roupas, seu carro não pode ser desligado para não congelar o motor e uma fruta qualquer como uma banana, caso seja deixada ao relento, ficará tão rígida que poderá ser usada como um martelo. Esta é a região de YAKUTIA, o lugar mais frio da região mais fria da Rússia, a Sibéria.

NA TERRA DO SENHOR DO FRIO... E DOS MAMUTES

Rússia é conhecida por abrigar regiões muito grandes, muito remotas e muito frias. A famosa Sibéria, o vasto território que se estende dos Montes Urais, na fronteira entre a Europa e a Ásia, até o Oceano Pacífico, é a grande responsável por dar a esse, que é o maior país do mundo, tais adjetivos. Acontece, porém, que esse território, sendo tão gigantesco, possui diferentes áreas. E uma delas, mesmo para o impressionante padrão siberiano, consegue se destacar em muitas coisas.
Em uma pacata vila do interior do estado de Yakutia, na parte oriental da Sibéria, logo cedo, uma luz se acende numa casa. Dentro dela, ao verificar o termômetro pela manhã, a temperatura perto dos quarenta graus negativos tranquiliza uma mãe cujo filho precisa ir à escola. Caso o termômetro apontasse algo abaixo de cinquenta, poderia ser arriscado sair de casa; mesmo a pequena escola primária sendo perto — abaixo de 54, certamente a aula seria vetada. Todavia, com esse tempo, pode-se dizer até que o clima está mais ameno. "Está frio, mas não tão frio", ela pensa.
Sendo assim, o pequeno Saiaan, após ouvir sua mãe chamar, se levanta da cama e lava o rosto com a água gelada que seu pai preparou derretendo um grande cubo de gelo retirado do rio. Todas as manhãs, o chefe da casa repete a rotina. Ele desperta antes de todos para pegar madeira e manter a fornalha acesa a fim de aquecer sua família. O estoque de lenha precisa sempre estar em dia. E ele faz isso antes de se dedicar ao seu trabalho como cuteleiro e artesão. Uma jornada repetida por muitos aldeões há séculos. Após enxugar o rosto, o garoto termina sua higiene escovando os dentes como qualquer criança comum de uma cidade na Europa ou nos longínquos e mais aprazíveis trópicos. Em seguida, desfruta o desjejum de panquecas calóricas preparadas por sua mãe. Ele as mergulha num pote de chantilly batido com geleia de morangos colhidos no verão. Para encarar o frio, a primeira refeição do dia precisa ser farta: sobre a mesa, ainda há trigo sarraceno e mingau de semolina (chamado pelos yakutanos de “kasha”).
Para sair à rua, a mãe se certifica quanto às roupas do filho: ele precisa estar bem protegido; agasalhado com várias camadas. Ela põe em Saiaan joelheiras de lã de camelo para proteger as articulações, enrola no seu pescoço um cachecol grosso, veste uma toca em sua cabeça e cuida para que o rosto dele fique o menos exposto possível. Traje aprovado, sua mãe, num gesto de afeto, leva seu nariz ao encontro do escondido nariz do filho (essa parte do corpo, a propósito, é a primeira a alertar para o início de um congelamento do corpo quando sua ponta fica branca). Após o “beijo”, ele parte. A temperatura fora de casa é tão baixa que, rapidamente, a umidade forma pequenos pingentes de gelo nos cílios e sobrancelhas do jovem. Mas ele se apressa e logo chega para assistir à aula. Pena não ter checado as canetas no estojo. Por não haver tido cuidado, seu cão Bergen as apanhou e levou para fora de casa; a tinta de algumas congelou.
Hoje, sua turma terá aula de caça e pesca, a favorita de Saiaan. Ele lembra disso, além de que, ao voltar para casa, com os trocados que ganhou do pai, poderá passar na lanchonete com o amigo para tomar sorvete. Não é porque faz tanto frio que as crianças da vila deixam de gostar dessa guloseima universal. Mais tarde, ele terá que ajudar a mãe e o pai nos afazeres. Saiaan tem nove anos apenas, mas já é responsável por cortar a lenha e auxiliar a remover a neve da frente de casa para não acumular poças no quintal. Também precisa sempre visitar os avós e ajudá-los a alimentar os cavalos. Sua irmã mais velha foi para a universidade no ano passado. Há, agora, mais trabalho a ser feito e, portanto, mais responsabilidade.
NO MAPA DA RÚSSIA, ACIMA, A REGIÃO DA YAKUTIA SE DESTACA. ELA COMPREENDE A MAIOR SUBDIVSÃO TERRITORIAL DENTRO DE UM PAÍS NO MUNDO COM MAIS DE TRÊS MILHÕES DE QUILÔMETROS QUADRADOS (ELA É MAIOR QUE A ARGENTINA, POR EXEMPLO). SUA DENSIDADE POPULACIONAL, NO ENTANTO, É BAIXÍSSIMA, NÃO ALCANÇANDO O,4 HABITANTES POR KM². ABAIXO, AS LUZES DO NORTE VISTAS COSTUMEIRAMENTE NOS CÉUS DO ÁRTICO, ONDE FICA GRANDE PARTE DA YAKUTIA.

A vila onde Saiaan mora com sua família é um pouco mais estruturada do que muitas aldeias menores espalhadas pela Yakutia onde a vida segue um ritmo, por assim dizer, mais lento. Essas aldeias guardam ainda vários aspectos e tradições de outrora, percebidas nas vestimentas das pessoas e estilo das moradias. Até o início do século passado, suas casas eram divididas em dois ambientes, um para as pessoas, outro para os animais. Os aldeões aproveitavam o calor gerado pelos cavalos, cães e porcos para se manter aquecidos. Mesmo hoje, é possível nas estepe encontrar grandes famílias morando em tendas cujas paredes amanhecem fustigadas pela geada e resistindo assim às condições agrestes de um dos lugares mais frios do planeta. São pastores de renas que vagam como nômades pela tundra do Ártico e encarnam a mais elementar das figuras de Yakutia.
Algumas tradições antigas, no entanto, permanecem por todo esse vasto território do nordeste da Rússia. É o caso do Munkha e do Yhyakh. O Munkha é um ritual onde centenas de pessoas se reúnem para pescar em lagos congelados utilizando uma técnica milenar com redes. Por meio do trabalho em equipe, grandes quantidades de peixes são capturadas (chegando à centenas de quilos) e divididas irmãmente entre as famílias. Esse festival compreende uma importante parte da cultura e identidade yakutana. Ele recria a forma vital como os ancestrais se preparavam para enfrentar os meses mais rigorosos de inverno e geralmente acontece no início de novembro.
Já o Yhyakh é comemorado no solstício de verão e celebra a chegada do Sol, que, a cada ano, renova a vida nas terras geladas de Yakutia. O destaque central desse festival fica pelos jogos poliesportivos disputados entre os homens yakutanos e também pela grande dança circular conhecida como Ohuokhai. Todos os presentes dão as mãos e entoam poemas antigos para saudar o novo dia que se estende até a madrugada por causa da latitude elevada daquelas terras. Juntos, honram os espíritos ancestrais, buscando suas bênçãos e proteção. A personagem mostrada na "capa", a primeira imagem desse artigo, é Chyskhaan, conhecido na cultura desse povo por muitos nomes, entre eles, "Touro do gelo" e "Senhor do frio". No folclore local, creem ser ele o responsável por trazer o frio e também levá-lo embora com sua magia. Ambos os festejos possuem um profundo significado para esses habitantes do norte e mantêm vivos a unidade e respeito pela natureza peculiares desse povo.
Nas fotos das extremidades acima, uma mulher do interior da Yakutia e um pastor de renas, personagens típicos formadores da herança cultural do povo yakutano. No meio e abaixo, respectivamente, homens puxam a rede abarrotada de carpas no Munkha e uma dança folclórica com todos utilizando trajes ricos em plumas e adereços encenada no palco do Yhyakh.

Naquela mesma manhã, num mercado da capital de Yakutia, Yakutsk (cidade de 400 mil habitantes onde a irmã de Saiaan cursa o ensino superior em paleontologia a fim de poder aproveitar e explorar a profusão de fósseis encontrados naquelas estepes frias; Yakutia é considerada a terra dos mamutes), Sergei, um experiente açougueiro, destrincha a carne de uma rena num local fechado para deixá-la melhor feita à venda. Ele leva os pedaços para o balcão — onde logo irão congelar como já estão a carne de cavalo e os peixes. Em Yakutsk, qualquer carne exposta ao tempo está sujeita aos mesmos efeitos de um congelador (no interior de um freezer geralmente faz -18°C, ou seja, mais fresco do que uma rua da capital). As próprias bochechas, nariz e dedos de Sergei trazem marcas de tanto trabalhar ao ar livre. Mas ele gosta da profissão. Vende bem a maioria dos dias. Todos sabem que proteína animal é essencial num lugar tão frio. A agricultura fica inviável na maior parte do ano no extenso território de Yakutia. O clima implacável torna o solo infértil. Frutas, legumes e verduras costumam ser importadas de outras regiões da Rússia, o que torna esses itens mais caros e alguns, relativamente raros. Nada consegue brotar do chão coberto por quilômetros e quilômetros pelo gelo e a neve branca. A exceção talvez sejam os fósseis do passado da Terra, principalmente chifres de mamutes e os valiosos diamantes.
Yakutia é a principal região de mineração de diamantes do mundo. Quatro das dez maiores minas de diamante a céu aberto do planeta se encontram nesse território, incluindo Aikhal, a maior delas. Na realidade, esse estado russo é extremamente rico em diversos recursos minerais. Os locais afirmam que Deus, ao criar o mundo, carregava toda sorte de elementos nas mão quando, ao passar pela região e sentir frio, ficou com elas dormentes e deixou tudo cair. Esse é o principal motivo por fazer os soviéticos, no passado, explorarem mais o lugar e transformarem Yakutsk num centro populacional. A gigante corporativa Alrosa, empresa que detém o monopólio da extração de diamantes na Rússia, fica sediada no estado. Vinte e cinco por cento do diamante bruto extraído no mundo provêm dela.
A região de Yakutia foi conquistada pela primeira vez pelos russos nos idos de 1630. Os Yakutos nativos, uma tribo de origem turca com características orientais, eram nômades que pastoreavam renas. Quarenta por cento da população de Yakutia atualmente descende deles. Yakutsk era um pequeno posto administrativo que permaneceu assim até a União Soviética, pós Revolução Russa de 1917, transformá-la numa prisão para presos comuns e dissidentes políticos como aconteceu com vários locais da Sibéria. A descoberta dos minerais mudou o projeto inicial. A fim de expandir os negócios do socialismo para aquela área gelada, milhares de voluntários foram trazidos em busca de aventura, oportunidades de emprego e salários mais altos. Com o tempo, Yakutsk ganhou hotéis, teatros, universidades e até uma casa de ópera.
UMA PEDRA DE DIAMANTE COM 390 QUILATES ENCONTRADA NA MINA MAYAT, DISTRITO DE ANABAR, YAKUTIA. À DIREITA, A GIGANTESCA AIKHAL (RHJ/ISTOCK)
Alina, uma senhora cliente de longa data de Sergei, aparece a certa hora no mercado ostentando por cima de toda roupa um grosso casaco de pele. Segundo ela, é mais elegante do que as jaquetas comuns de pluma. Não só em relação aos diamantes Yakutia se tornou famosa. Há séculos, suas peles também são cobiçadas. Durante o Império Russo, casacos de alta qualidade como zibelina, vison e de raposa eram vendidos por toda Europa e suas peles chamadas de o “ouro macio” de Yakutia. É moda entre as mulheres yakutanas exibir um belo casaco felpudo! Na verdade, nem todas podem se dar ao luxo de fazer isso já que uma peça apenas pode custar de quatrocentos a quase um milhão e trezentos mil rublos — se for de pele de zibelina. Ou seja: entre seis e dezessete mil dólares! Considerando que o salário médio mensal é de cerca de 800 dólares, elas precisam economizar durante um bom tempo para poder comprar um.
Alina diz que não apareceu mais cedo porque uma das pesadas portas de seu prédio emperrou. Teve que aguardar um vizinho para lhe ajudar. As casas e prédios da capital costumam ter duas ou três portas para barrar o vento. Cinemas, shoppings, museus e outros locais públicos também possuem espaços com guarda-roupas para os visitantes deixarem suas pesadas jaquetas. Dentro deles, onde é mais quente, fica inviável transitar com tanta coisa sobre o corpo. Além do casaco, Alina usa nos pés uma versão local de duas valenski (as famosas botas de lã russas) e luvas com miçangas. Ela está procurando sempre, de alguma forma, misturar estilo e calor. A senhora pede ao açougueiro um quilo da carne e mais um de chouriço de rena para, no jantar, preparar um ensopado. Junto com gordura, o misturado ficará ótimo! Seu marido pediu que ela não se esquecesse do fígado de cavalo; comido cru e congelado, é o “chocolate” yacutano. Na última vez que fora pescar no rio Lena, ele voltou para casa com uma saca cheia de carpas. Para abrir o apetite, gosta de cortá-las em fatias bem finas chamadas stroganinas — uma espécie de sashimi congelado — e tomar com uma boa dose de vodka.



SENHORAS YAKUTANAS EXIBEM SEUS CASACOS DE PELE NAS RUAS DE YAKUTSK E UM COMERCIANTE RELAXA MISTURANDO A FUMAÇA DE SEU CIGARRO ÀQUELA EXALADA PELA SUA RESPIRAÇÃO EM MEIO ÀS CARNES CONGELADAS DO MERCADO DA CAPITAL. MAIS ABAIXO, YAKUTSK É CONHECIDA COMO "A CIDADE COM AS TRIPAS DE FORA" PELO FATO DE TODO SEU ENCANAMENTO PRECISAR FICAR EXPOSTO; O PERMAFROST NÃO PERMITE QUE O MESMO SEJA ENTERRADO (FOTOS: ALEX VASILYEV).
As casas e prédios em Yakustsk costumam ter duas ou três portas para barrar o vento gelado. Também espaços públicos fechados possuem sempre um local para os visitantes guardarem seus pesados casacos. Seria incômodo poder aproveitar um pouco de calor com tanta vestimenta sobre o corpo.


Yakutia (que também é conhecida como República de Sakha), cuja bandeira atual e dos tempos da ex-URSS são mostradas ao lado, é o maior estado dentro de um país em extensão, por assim dizer, dentre todas as nações do mundo. Com mais de três milhões de quilômetros quadrados, ela ocupa uma área maior do que a Argentina. A Yakutia possui três fusos horários dentro da federação russa. Localizada ao oriente desse território, quarenta por cento de suas terras ficam ao norte do Círculo Polar Ártico. São, por isso, cobertas pelo permafrost, um solo congelado permanentemente. O disco no pavilhão atual é uma representação disso. Ele simboliza o Sol branco do céu Ártico visto pelos yakutanos. Já o verde se refere à tundra, o branco representa a neve e o vermelho, a coragem do povo em resistir num lugar tão rico, mas tão inóspito.
Já distante de Yakutsk, após dias atrás ter deixado o último carregamento no mercado da capital, o experiente caminhoneiro Ivan, nascido em Moscou (que não fica a três, mas a seis fusos horários de onde ele está), enfim, avista seu destino. Trata-se de Oymyakon, a mais fria das vilas de Yakutia. Ele viajara cruzando montanhas e atravessando florestas pela longa e traiçoeira rodovia conhecida como “a Estrada dos ossos”. Construída por detentos da era soviética entre 1930 e 1950 por ordem de Stalin para conectar uma série de gulags (os campos de prisioneiros), por conta das condições extremamente adversas, cerca de um milhão deles morreram durante esse empreendimento. Diz-se que os falecidos eram abandonados pelo caminho e seus restos “varridos” para a estrada. Daí, o mórbido apelido.
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OYMYAKON FICA A SEIS FUSOS HORÁRIOS DA BADALADA MOSCOU. SÃO QUASE 10.000 KM DA CAPITAL RUSSA, NA EUROPA, ATÉ A PEQUENA VILA NAS ENTRANHAS DA SIBÉRIA ORIENTAL, NA ÁSIA.

A traiçoeira "Estrada dos ossos". Cerca de um milhão de homens morreram durante sua construção.
Originalmente, Oymyakon era um local de parada para pastores de renas naquela parte da Sibéria. Essa vila fica no alto, a 700 metros acima do nível do mar (que se encontra longe e incapaz de moderar a temperatura ali). Trata-se de um vale no caminho das rotas de caça cuja geografia envolta por montanhas abriga o local de ventos fortes, mas acaba por reter a temperatura extremamente negativa em seu interior. Sem uma circulação, o vento frio da Sibéria, mais frio e, portanto, mais pesado do que a própria massa de ar provinda do Pólo Norte, por causa da gravidade, estaciona ali. Com o tempo, apesar do clima adverso, um pequeno assentamento surgira nesse entreposto devido principalmente às fontes termais nele existentes. Daí, se formara o povoado de 1,5 km² que hoje existe no isolado leste da Rússia e abrigava, em 2020, somente cerca de 800 habitantes.
Oymyakon, Yakutsk e a outrora cidade exílio da extinta União Soviética, Verkhoiansk, são as únicas cidades do mundo onde a amplitude térmica, ou seja, a diferença entre a menor e a maior temperatura, pode variar mais do que 100°C. Em 1933, Oymyakon registrou uma medição recorde de -68°C! isso já é surpreendente, mas há relatos de que ela já chegara a números ainda mais baixos: algo menor do que 70° negativos. Pode-se dizer que apenas na Antártica foi verificado algo abaixo disso num local com humanos. Ainda assim, lá, trata-se de um posto avançado com cientistas e exploradores, não centros urbanos. A média durante o inverno em Oymyakon, que dura, como em toda Yakutia, sete meses do ano, é de -45°C; no verão, a temperatura pode chegar a 25°. E nas outras duas cidades acontece o mesmo. Qualquer uma pode servir a esse drink gelado russo.
Oficialmente, a menor temperatura registrada em Oymyakon ocorreu em 1933: -68°C. Mas há relatos que ela já passou da casa dos -70.



NA PRIMEIRA FOTO, UM GESTO CLÁSSICO DOS YAKUTANOS PARA MOSTRAR AOS ESTRANGEIROS O QUÃO FRIO FAZ EM SUAS TERRAS: A ÁGUA FERVENTE VIRA VAPOR IMEDIATAMENTE AO SER LANÇADA NO VENTO. NO MEIO, UMA JOVEM EXIBE UM BELO COLAR YAKUTANO QUE, ALÉM DA BELEZA, PARA ELA, FUNCIONA COMO UMA ESPÉCIE DE TALISMÃ. FEITO DE PRATA PURA, ALGUNS DELES PODEM PESAR MAIS DE QUINZE QUILOS. NA SUA MÃO, A MOÇA CARREGA UM OBJETO FEITO COM O PÊLO DO RABO DE UM CAVALO QUE SERVE PARA ESPANTAR MOSQUITOS, COMUNS NO VERÃO DE YAKUTIA (ÉPOCA DURANTE A QUAL AS CRIANÇAS YAKUTANAS PODEM BRINCAR SEM AS ROUPAS PESADAS FORA DE CASA, COMO MOSTRADO).
A escuridão, nos meses mais frios, se estende por infinitas horas, enquanto, no curto período de calor, o Sol brilha por mais de vinte voltas do relógio: as noites brancas perduram sem fim. Nesses locais, carros precisam ficar ligados o tempo todo ou o motor congela (a não ser que você disponha de um sistema de manta aquecida para cobrir todo o veículo). Roupas minimamente úmidas, quando postas no varal fora de casa, viram verdadeiras chapas de pano em poucos minutos. Queimaduras por frio são normais e as pessoas não podem usar óculos com armação de metal, pois, em contato com o rosto, podem grudar por causa do frio e arrancar sua pele. Frequentemente, os turistas são alertados quanto a isso.
Em Oymyakon e Verkhoiansk, como nas vilas menores de Yakutia, não existe água encanada nem estações de tratamento porque a água facilmente congelaria (todos os banheiros para se fazer as necessidades ficam na parte externa das casas, assim como a chamada casa de banho onde, aos domingos, os yakutanos se lavam e desfrutam de uma sauna). Dessa forma, tal qual no deserto, a água se torna um item bastante precioso. Ela precisa ser racionada em cubos de gelo, sendo a lenha e o carvão imprescindíveis para cozinhar e se manter aquecido dentro de casa (embora, por esses paradoxos da natureza, como já dito, em Oymyakon, haja rios de água corrente que não congelam mesmo na superfície por serem de fontes termais. O nome da cidade, inclusive, significa isso: “água que não congela”). Lá, celulares e eletrônicos também esgotam suas baterias em minutos quando expostos ao frio, sendo inviável utilizá-los fora de um local abrigado. Até lobos já foram encontrados petrificados após uma nevasca severa depois de uma noite invernal. Não é raro saber de algum bêbado que, anestesiado pela vodca, também acabou tão inerte quanto uma estátua de Lênin por adormecer na rua após um porre. Esse é um duro lembrete do quão o frio pode ser implacável.


NA FOTO MAIS ACIMA, UM MAMUTE É EXIBO NAS RUAS DE YAKUTSK E,TAL QUAL EM SUA ÉPOCA, DURANTE A GRANDE ERA DO GELO, ESTÁ COBERTO POR NEVE. A YACUTIA É UMA DAS REGIÕES DO GLOBO TERRESTRE ONDE SE PODE ENCONTRAR MAIS FÓSSEIS PRESERVADOS POR CAUSA DO PERMAFROST. EM NENHUM OUTRO LUGAR, ACHAM-SE TANTOS RESTOS DE RINOCERONTES E MAMUTES LANOSOS. NA OUTRA IMAGEM, UMA SENHORA AGUARDA CALMAMENTE PELO ÔNIBUS AQUECIDO NAS RUAS DA CAPITAL (FOTOS: ALEX VASILYEV).
Apesar de todos esses percalços, pessoas fizeram dessa região sua morada. É uma virtude humana se adaptar. Toda Yakutia é um símbolo disso. Lá, fica claro o quão nosso espírito indomável pode resistir às intempéries. A natureza proporciona um desafio a cada dia. É preciso ter vontade e trabalhar duro quando se vive numa das áreas mais frias do planeta. Porém, ao modo delas, as pessoas são felizes. Tudo é uma questão de atitude, de como se encara o tempo. Na maior parte do ano, procuram passar não mais do que o necessário ao relento. Cada momento é uma corrida contra o frio. Mas, quando a primavera e, principalmente, o verão chega, os campos se tornam verdejantes e repletos de vida. Todos, então, desfrutam, digamos, de uma rotina mais solícita. É possível caminhar sem tantas roupas, pescar carpas nos rios e, nas suas margens, assá-las no fogo apreciando a beleza da natureza escondida durante o inverno.
Ao descer do veículo, o ar gelado atinge os pulmões do caminhoneiro Ivan como um soco. Ele pode ouvir um barulho de grama seca enquanto respira; é o ar quente de seus pulmões virando cristais de gelo ao ser expelido. O frio denso pesa sobre cada inalada e a respiração pode ser contada. Ele tenta ignorar o tempo, checa as correntes dos pneus e segue (de Yakutsk até Oymyakon foram 900 km de estrada). A caminho da casa de um velho amigo onde, finalmente, poderá descansar, percebe um funeral acontecendo no pequeno cemitério do vilarejo. Por causa do chão congelado, para se enterrar os mortos, é preciso primeiro fazer uma fogueira que aqueça a terra, derreta a grossa camada de gelo e permita cavá-la. Um processo feito dias antes do sepultamento. Em Oymiyakon, isso é natural. Por toda Yakutia, coisas simples exigem maior trabalho. Trata-se de uma vida moldada pelo poder bruto da natureza, por sua adversidade e pelo ímpeto humano por sobreviver; uma experiência única. O caminhoneiro moscovita, ao chegar à casa do amigo e perguntar sobre como é viver ali, ouve dele que existem dificuldades na vida de qualquer pessoa, seja em qualquer lugar da Terra. Mas, se ele pudesse escolher o lugar que fosse do mundo para morar, escolheria certamente continuar em Yakutia. §
O inverno pode durar muito, mas a primavera sempre chega com a esperança de renovar as energias, é o que pensam os yakutanos. E cada tempo deve ser vivido à sua maneira.

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