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TUAREGUES } OS HOMENS AZUIS DO SAARA

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No deserto do Saara, uma cor sobressai. Mas não se trata do tom branco contido no brilho ofuscante do Sol ou o dourado refletido pelas dunas. Ora escuro e profundo, por vezes claro e suave, o AZUL se espalha pela paisagem e identifica os trajes e a pele do povo que conhece aquelas areias como nenhum outro, os TUAREGUES.


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A "MODA" DO DESERTO


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o cruzar pelo deserto do Saara, seguramente qualquer viajante irá avistar, nalguma direção, em alguma hora, indivíduos trajando uma túnica larga, longa e solta e ostentando na cabeça um tecido enrolado várias vezes formando uma espécie de turbante. Pode ser um sujeito solitário conduzindo um rebanho de cabras ou um pequeno bando de pessoas formando uma caravana, todos parecidos, usando o mesmo “uniforme”. A conclusão óbvia para qualquer um de fora é que tais peças servem às almas peregrinas daquele lugar como um jeans para um ocidental; um tipo de moda coletiva. E há uma grande chance de esses peregrinos cobertos com tais roupas serem membros dos chamados tuaregues, conhecidos como o povo nômade do deserto.


A expressão tuaregue pode se originar de Targa, nome berbere da província de Fezã, ao sul da Líbia, ou da palavra árabe twâriq, que significa algo como “abandonados por Deus”. Eles próprios preferem se autodenominar imazighen, “os homens livres”. Originalmente brancos do Mediterrâneo, hoje, podem ser encontrados tuaregues loiros ou ruivos nas montanhas Atlas do Marrocos ou de pele negra nas regiões do Sahel. Os tuaregues possuem sua própria língua, o tamasheq, e um alfabeto seu, o tifinagh (outro termo pelo qual se definem é kel tamasheq: "os que falam tamasheq"). O primeiro registro da existência desses nômades data do século V a.C. feito por Heródoto e, de fato, esse seu modo de se vestir padrão carrega o peso das tradições dos antigos berberes, simbolizando uma cultura que tenta permanecer ante a força da globalização e da modernidade. Mas, em relação às roupas, há outro detalhe que chama a atenção de todo estrangeiro: a escolha pela cor azul predominantemente em suas túnicas e turbantes. Inúmeras vezes ela se repete.


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OUTROS POVOS OS CONHECEM COMO TWÂRIQ, "OS ABANDONADOS POR DEUS". OS TUAREGUES PREFEREM CHAMAR A SI PRÓPRIOS POR IMAZIGHEN: "OS HOMENS LIVRES".


NA FOTO ABAIXO, PÔR DO SOL SOBRE AS DUNAS DE WAN CAZA, REGIÃO DO SAARA EM FEZÃ, NA LÍBIA (LUCA GALUZZI) / ACIMA, DOIS TUAREGS COBERTOS POR SEUS TRAJES TÍPICOS: O TAGELMUST E O BOUBOU

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O vestido esvoaçante, que cobre até o tornozelo e possui mangas largas, é um tipo de boubou, vestimenta tradicional dos povos da África. A origem do boubou tuaregue remonta aos séculos VII e VIII, quando o comércio entre a África subsaariana e o norte do continente começou a ganhar dinamismo. A partir desse período, centros comerciais surgiram ao redor do Saara. Itens como minerais, especiarias, animais e tecidos tinham enorme valor na costa do Mediterrâneo. Os tuaregues cruzavam a vastidão das paisagens de areia com suas centenas de camelos percorrendo as rotas apenas por eles conhecidas. Consistiam guerreiros valentes e insubordinados de espada, lança e escudo (foto a seguir) que somente a Legião Estrangeira Francesa, após anos de combates e massacres, conseguiu “pacificar”.


Para se ter uma ideia, em 1881, os franceses empreenderam uma expedição pelo Saara com uma centena de homens e bornais repletos de munição a fim de encontrar o caminho para a construção de uma ferrovia de mais de 2.000 km que cruzasse o deserto e colocasse os recursos do Sudão Francês ao alcance da metrópole. Quando os tuaregues avistaram uma coluna armada marchando sobre as dunas, se ofereceram para guiá-los. Eles levaram os franceses para as entranhas do deserto.

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Então, envenenaram sua água e suas tâmaras. Depois, os abandonaram à própria sorte. Findo o período colonial, nos anos 1960, o território antes ocupado por esse povo fora dividido em vários países: Argélia, Líbia, Mali, Níger e Burkina Faso. Embora muitos afirmem que a vestimenta nada mais é do que um símbolo de modéstia, fica evidente sua função de proteger do Sol escaldante e das frequentes tempestades de areia. Juntando proteção e praticidade, o boubou facilmente se tornara uma escolha atemporal. Obviamente, o tempo fez o trabalho de, assim como os próprios tuaregues iam e vinham com novidades, trazê-las também do norte para se fundir à cultura do deserto e definir um estilo.


Quando os tuaregues avistaram uma coluna armada marchando sobre as dunas, se ofereceram para guiá-los. Eles levaram os franceses para as entranhas do deserto. Então, envenenaram sua água e suas tâmaras. Depois, os abandonaram à própria sorte.

Já o tecido chamativo que cobre toda a cabeça, deixando à mostra somente os olhos e protegendo o rosto chama-se tagelmust. Servindo como um escudo contra a areia carregada pelo vento e o calor do Sol, ele é feito de algodão e mede de três a dez metros! Somente os homens adultos podem usá-lo (as mulheres andam sem véu e usam a melhafa, um tecido longo enrolado em volta da cabeça e do corpo, enquanto os meninos somente podem tê-lo no início da puberdade já que o mesmo representa uma marca de masculinidade). Os homens tuaregues consideram, por vezes, vergonhoso mostrar a boca ou nariz a estranhos, chegando a tampar suas feições com as mãos se forem vistos com o rosto despido (apenas os homens de classe elevada deixam escorregar o véu e só os que já realizaram a peregrinação à Meca o podem remover completamente). Até hoje, muitos o desenrolam por respeito apenas na presença de familiares ou pessoas próximas ou quando estão trabalhando. O uso do tagelmust é tão forte na cultura do deserto que lendas afirmam, no passado, durante as batalhas, não ser possível reconhecer um guerreiro quando ele caía em combate e perdia seu véu; somente ao cobrir seu rosto novamente, seus companheiros eram capazes de saber quem ele era. Os tuaregues também acreditam que seus turbantes representam uma proteção contra maus espíritos e impedem que os inimigos leiam seus pensamentos. Eles jamais os abandonam; nem mesmo quando dormem. Também nunca o lavam, usando-o até se rasgar.


O imzad é um violino de uma corda apenas tocado pelos tuaregues em festejos e horas distintas do dia. Seu corpo é feito de uma cabaça coberta da pele de um animal para formar uma caixa acústica e a corda, de crina de cavalo.
O imzad é um violino de uma corda apenas tocado pelos tuaregues em festejos e horas distintas do dia. Seu corpo é feito de uma cabaça coberta da pele de um animal para formar uma caixa acústica e a corda, de crina de cavalo.

Mas e quanto à profusão da cor azul? Antigamente, as cores escolhidas para os boubous tinham a ver com a posição social de cada um. Comerciantes ricos usavam boubous brancos como o giz, pois se davam ao luxo de poder sempre lavar suas roupas. Já os menos abastados preferiam túnicas pretas por que precisavam frequentemente repetir suas vestimentas. Em determinada época, outro povo, os tuculores, provindos do Senegal, começaram a comercializar o corante índigo, que dava uma tonalidade forte às roupas. Seu uso se tornou frequente uma vez que os boubous azuis-escuros eram perfeitos para quem não tinha condições de se vestir com os brancos, contudo não desejavam usar os pretos. Como tais, eles também não necessitavam frequentemente serem lavados. Diz-se que tal vestimenta, bem como o turbante nessa cor, simbolizam a conexão entre o povo tuaregue e o deserto, representando o ambiente vasto e muitas vezes hostil em que vivem. Por ser tão avistado no Saara, esse tom é chamado “azul do deserto”. Além das roupas, ele aparece no pó de pedra preto-azulado que as mulheres usam para escurecer os lábios e delinear os olhos, criando um ar único de mistério. Também no Alcorão, principal livro da religião islâmica a qual os tuaregues seguem, o azul representa o céu e a divindade.


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O TOM ÍNDIGO PRESENTE NAS VESTIMENTAS E TURBANTES DOS TUAREGUES SIMBOLIZA A FORTE LIGAÇÃO ENTRE ESSE POVO E O SAARA; ENTRE O HOMEM E A NATUREZA. POR ISSO CARREGA ESSE NOME: "AZUL DO DESERTO".

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Apesar de os tuculores terem criado as vestimentas em tom índigo, foi o povo tuaregue que adotou e popularizou a moda. A opção pela cor é tamanha que, com o tempo, eles foram apelidados de “os homens azuis do Saara”. Mas o motivo para isso não é exatamente a tonalidade dos trajes, mas, sim, o fato de desbotarem debaixo do Sol quente deixando a pele do rosto e de partes do corpo dos tuaregues, como mãos e braços, azuladas por causa do pó de índigo que se desprende da túnica e do véu. Com a chegada de corantes químicos da Ásia e da Europa nas últimas décadas e outras técnicas aprendidas de tingimento mais simples (como a que submete os fardos a somente um banho de água fria), surgiu a opção dos boubous azul-claros. Por sua semelhança com os brancos tradicionais, eles passaram a ser bastante utilizados já que só precisam ser lavados a cada três ou quatro dias.


NA PRIMEIRA FOTO, UM TUAREGUE FOTOGRAFADO IMPONENTE EM SEU CAMELO, ANIMAL SÍMBOLO DO DESERTO TAL QUAL O É ESSE POVO. NA IMAGEM A SEGUIR, UMA MULHER TUAREGUE DEIXA APARECER AS MARCAS AZUIS NO ROSTO CAUSADAS PELO TECIDO DAS ROUPAS. ELA TAMBÉM OSTENTA GRANDES BRINCOS DE PRATA. A METALURGIA É UM OFÍCIO TRADICIONAL ENTRE ESSES NÔMADES QUE FREQUENTEMENTE SÃO VISTOS COM COLARES PENDENDO DO PESCOÇO, PULSEIRAS E ANÉIS.



Em Nuaquechote, capital da Mauritânia, onde os tuaregues são mais comuns na fronteira norte com o Mali, o mercado central é um verdadeiro mundo azul (foto abaixo). Muitos vendedores oferecem aos clientes somente essa opção de cor e, a cada quatro homens, um ostenta no corpo um boubou nessa tonalidade — talvez com algum adorno dourado ou branco (além de bolsos internos e externos, um utensílio raro séculos atrás, mas bastante útil no mundo de hoje). E, fora as roupas, a cor azul se estende para os toldos de barracas na feira e pelas ruas em portas de casas, tetos e cercas.



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O uso do tagelmust é tão forte na cultura do deserto que lendas afirmam, no passado, durante as batalhas, não ser possível reconhecer um guerreiro quando ele caía em combate e perdia seu véu; somente ao cobrir seu rosto novamente, seus companheiros eram capazes de saber quem ele era.

Com um fluxo maior de pessoas se estabelecendo nas grandes cidades (onde o estilo cada vez mais tende para os ocidentais), apesar da história e tradições, tais vestimentas têm caído em desuso. Mas isso ocorre fora do deserto. Lá, dentro das tendas que vagueiam errantes de um oásis para outro, os costumes permanecem. A influência da moda externa simplesmente não é suficiente para suplantar as necessidades impostas pela natureza. O Saara exige simplicidade, eficiência e durabilidade — na língua dos tuaregues, a palavra “calor” (tuksé) deriva de “sofrimento”. Os tuaregues rezam à divindades como pedras, água, fogo e montanhas e, como tais, sabem resistir. Na prática islâmica de lavar as mãos, ao invés de água, usam areia. Uma adaptação às condições impostas pelo deserto. E eles sabem que o Saara também prefere tons de azul. §


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Na última imagem, uma típica silhueta do deserto: um tuaregue puxando camelos em fila indiana. A maior referência desses nômades é uma figura feminina cujo nome, Tin Hinan, remete ao tipo de vida que os tuaregues levam, "Aquela que vive em tendas" (e poderia também significar "Mãe da tribo" ou "Rainha dos que acampam"). Ela é chamada pelos tuaregues por Tamenukalt: a "rainha" (foto do meio). Tin Hinan teria vivido no século IV. Segundo as tradições orais, era uma mulher de grande beleza, rosto perfeito, com olhos grandes e luminosos. Era uma guerreira, sábia e dominadora, Tin Hinan conquistou sua posição de liderança após empreender uma árdua jornada junto a uma de suas servas até a região do Maciço de Hoggar, na atual Argélia. Ela teria unido as tribos tuaregues e, assim, assumido a condição de sua líder. Na primeira foto, um tuaregue expõe todo o rosto ao orar nas areias do deserto em direção à Meca.
Na última imagem, uma típica silhueta do deserto: um tuaregue puxando camelos em fila indiana. A maior referência desses nômades é uma figura feminina cujo nome, Tin Hinan, remete ao tipo de vida que os tuaregues levam, "Aquela que vive em tendas" (e poderia também significar "Mãe da tribo" ou "Rainha dos que acampam"). Ela é chamada pelos tuaregues por Tamenukalt: a "rainha" (foto do meio). Tin Hinan teria vivido no século IV. Segundo as tradições orais, era uma mulher de grande beleza, rosto perfeito, com olhos grandes e luminosos. Era uma guerreira, sábia e dominadora, Tin Hinan conquistou sua posição de liderança após empreender uma árdua jornada junto a uma de suas servas até a região do Maciço de Hoggar, na atual Argélia. Ela teria unido as tribos tuaregues e, assim, assumido a condição de sua líder. Na primeira foto, um tuaregue expõe todo o rosto ao orar nas areias do deserto em direção à Meca.

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QUEM
ESCREVE

O autor, ALLAN KRONEMBERG,

é jornalista, ex-militar e o criador

da marca NA FRONTEIRA. Desde novo,

Allan é aficionado por histórias

de exploradores, filmes de cowboy e livros

sobre os mais variados temas e aventuras

(com destaque para as obras de Hemingway,

Jack London, os poemas de Bukowski,

frases de Twain e os contos hiborianos

de Howard - inclua as páginas de

"O tempo e o vento", de Érico Veríssimo,

nessa lista mais as notas pujantes de uma

canção do The Cult). Tornando-se

ele mesmo, pelos anos, um aventureiro,

Kronemberg sempre buscou na

natureza selvagem - e numa garrafa

de whisky, ele diria - a inspiração para a vida

e suas próprias estórias.  Foi dele a ideia

de tornar a NA FRONTEIRA, além de uma

grife de roupas, uma revista sobre

os mais diversos assuntos pertinentes

à rotina e aos gostos dos clássicos

aventureiros; homens e mulheres

com o espírito da tempestade em seu sangue.

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