CRUZAR A LINHA // UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE OS PERIGOS DA NATUREZA REAL
- Allan Kronemberg

- 23 de set.
- 10 min de leitura

"...Caminho agora para dentro da natureza selvagem.” Este é o trecho final de um cartão-postal escrito por Chris McCandless a um amigo em abril de 1992. Chris, um jovem americano de família rica, tornou-se famoso após ser encontrado morto por inanição por um grupo de caçadores de alce em uma região desabitada no interior do Alasca. O caso virou um enigma na época até o rapaz ter sua trajetória revelada pelo jornalista Jon Krakauer no livro “Na natureza selvagem”. Desejando fugir da civilização — numa espécie de busca interior —, McCandless abandonou tudo para perambular pelos Estados Unidos atrás de aventuras. Sua história, apesar do fim trágico, virou uma espécie de odisseia para os aventureiros. O sonho mais ousado de Chris era rumar para o norte a fim de explorar a vastidão gelada do Alasca. De lá, pensava em voltar para casa. O jovem idealista, sozinho e sem preparo, no entanto, acabou por ultrapassar uma certa barreira ao partir para aquele lugar ermo. Uma linha invisível que, como aconteceu no caso dele, pode definir quem vai
SOBREVIVER OU NÃO


eparando a civilização do selvagem, isto é, os espaços colonizados pelo Homem das áreas pouco ou totalmente desabitadas existe uma divisa, um limite. Na maioria dos lugares, essa estrema se torna perceptível, feito a borda de um prato, por algum obstáculo natural, como uma serra, uma vasta planície, um lago ou um rio. Todavia, é preciso se ter em mente que lá, dentro da natureza, há uma outra fronteira ainda mais distante. E essa, de fato, pode não ser notada pelos desavisados. Um lugar a partir do qual ela se torna extremamente hostil.
Podemos, numa pequena trilha, cruzar a dita primeira frente, formada por matagais e as primeiras colinas, nos inserindo em um ambiente já selvagem e arriscado. Contudo, ao penetrarmos mais e mais na natureza, avançaremos sobre o limite que separa o perto do longe, o acessível do inacessível. Uma linha invisível, mas que pode ser sentida de alguma forma como o correr de um arrepio pela espinha. Notada na medida em que percebemos haver caminhado o bastante para estarmos afastados demais “de casa” e já além do que chamaríamos de seguro. Ou seja: muito perto do perigo. Essa linha pode ser chamada como... a linha do medo.

No Parque Nacional de Itatiaia, no sul do estado do Rio de Janeiro, como exemplo, na trilha que leva para o Pico das Agulhas Negras, uma placa com alguns erros de grafia, em certo trecho, avisa: “A partir deste ponto é necessário o conhecimento básico de técnicas de escalada em rocha e o manejo correto de equipamentos de segurança. Para sua segurança não ultrapasse este ponto sem o porte de equipamentos mínimos de segurança. Resgates são de complexa execução e impossíveis em determinados locais e condições climáticas. Caso decida continuar, você estará por sua conta e risco.” Esta placa deixa claro o que é esta linha a qual me refiro. Mas, na maioria dos lugares, não há placas.
Engana-se quem acha que a natureza é um parque de diversões. Deixar a proteção de um local seguro e adentrar um ambiente selvagem, em qualquer proporção, inspira cuidado. Mesmo uma trilha de final de semana requer um mínimo de atenção e de condicionamento. Há pessoas que se perdem na Floresta da Tijuca, no meio da cidade do Rio de Janeiro. Aqueles que conhecem a trilha para o cume da Pedra da Gávea, nessa mesma metrópole, sabem que o caminho é bem sinalizado e sem grandes dificuldades. No entanto, num determinado ponto, está a chamada Carrasqueira, um pequeno lance de escalada o qual, feito por alguém inexperiente, pode levar a uma queda fatal. Se, tão perto assim de uma área urbana, tais dificuldades já existem, o que dizer em lugares mais abastados.

Eu posso lembrar um fato marcante que aconteceu comigo na Serra Fina, região de montanhas entre os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Sem jamais ter pisado naquela serra antes — mas já tendo inúmeras vezes acampado e escalado outros picos, fora possuir experiência militar —, havia ido para lá sozinho: minha mochila, Deus e eu. Tinha vinte e poucos anos. Havia recém deixado o Exército. Eu não possuía nenhum mapa da região — o que foi um erro —, só algumas informações que havia lido numa revista sobre trilhas. Sem GPS, sem nada. A fim de realizar a travessia pela serra (considerada puxada por causa do desgaste físico e mais ainda por conta da falta de locais durante o percurso onde se possa achar água), comecei meu trajeto a partir do local que os trilheiros apelidam Toca do Lobo. Meu plano era chegar ao topo do Capim Amarelo naquele primeiro dia e seguir o percurso natural da travessia. Entretanto, por conta de uma precipitação minha, peguei o caminho errado e, estranhando o aspecto fechado da trilha, ao invés de retornar até achar de volta o percurso que tivesse certeza ser o correto, prossegui avançando na dúvida. Isso me fez atravancar uma enorme mata para conseguir chegar ao topo de uma colina de onde eu imaginava poder avistar a trilha correta. Perdi um dia inteiro nisso me cansando bastante. No outro, prossegui fazendo eu mesmo meu caminho, rumando na direção do Capim Amarelo até encontrar a trilha já quase na sua encosta.
Quando finalmente pisei no topo dessa montanha, eu sabia que havia retomado o trajeto. A questão, porém, é que, para chegar ali, tinha levado dois dias extremamente desgastantes, eu mesmo abrindo a trilha, ao invés de um só pelo caminho normal. Fora isso, toda água que havia carregado já tinha praticamente acabado. Os trilheiros, ao subir o Capim, abastecem seus cantis numa cachoeira pequena entre a Toca do Lobo e a encosta propriamente dita da montanha para depois, somente ao fim do outro dia, encontrarem água. Como eu saí muito na frente, não passei por ela.
Por causa disso, na manhã seguinte, na tentativa de seguir adiante mesmo com pouca água (na esperança de, no último trecho daquela perna, chegar a um local onde sabia que iria encontrá-la), a natureza cobrou seu preço. Caminhando sem parar, subindo e descendo morro sem um pingo sequer no cantil, a sede extrema fez a mente, uma hora, não saber para onde estava indo. Eu me perdi. Sedento e confuso, comecei a voltar. Cheguei novamente ao topo do Capim Amarelo e decidi, então, descer a serra para encontrar água. Não havia ninguém na trilha. Cheguei a urinar na mão para umedecer a boca. No trajeto, ao ouvir o barulho de água corrente no fundo de um vale, deixei a mochila com todos os meus pertences escondida atrás de uma macega e desci. Já era quase noite. Desbravando o mato alto na busca pela fonte, consegui chegar até quase ela — seu barulho ficou bem próximo. Precisei passar a noite ao relento. Aproximando-se o inverno, o frio veio com força. Eu vestia um anorak e tinha carregado, além de dois cantis, minha faca, uma lanterna e meu isqueiro com parafina, uma espécie de kit de sobrevivência. Para me aquecer, juntei algumas folhas secas e, com a parafina, fiz uma pequena fogueira. No outro dia, pude, enfim, saciar a minha sede e subi a colina. Não encontrei minha mochila. Desci a serra com o que tinha, encontrei um senhor que, muito prestativo, me ofereceu comida e me emprestou um dinheiro para eu retornar para casa.
Agora veja: uma aventura na qual eu subestimei a natureza e não me planejei como devia quase teve um fim trágico. Se eu não tivesse um bom preparo físico e experiência de sobrevivência, poderia ter ficado perdido na montanha, sem ajuda de ninguém. Eu cruzei a linha e quase fui longe demais. Poderia não ter resistido ao cansaço, à sede, ao frio. Pela minha cabeça, ao partir do Rio de Janeiro para a região da Serra Fina, não imaginava que tudo isso pudesse acontecer. Essa experiência mudou a forma como passei a ver as coisas, me fez encarar os desafios com mais prudência. Por isso hoje escrevo este artigo.

A aventura do jovem Christopher McCandless, que se tornou famosa após ser documentada pelo jornalista Jon Krakauer no livro "Na natureza selvagem", é uma mostra clássica do quão a natureza pode ser impiedosa. Após percorrer inúmeros lugares, aprendendo uma série de coisas, o ousado e sonhador Chris chegou ao Alasca. território que ele desejava tanto conhecer e explorar. Lá, pegou uma carona que o deixou no início de uma esquecida e acidentada estrada, já em um lugar bastante isolado do interior. O homem que o levou até esse lugar, percebendo não ser o jovem alguém dali e por não possuir o rapaz calçados adequados para aquele terreno, deu-lhe algumas dicas e deixou com ele uma par de galochas. Chris, que carregava na mochila não mais do que alguns livros inspiradores e alguns quilos de arroz, além de uma espingarda e munição, agradeceu e seguiu sozinho pela estrada até se deparar com o rio Teklanika. Mal sabia o jovem, corajoso, mas inexperiente na natureza, que aquela era a linha dele. McCandless atravessou o rio sem problemas (sendo o mês de abril, portanto, primavera ainda, estava relativamente raso) e prosseguiu pela trilha existente do outro lado até achar, numa clareira, um ônibus abandonado. Ele decidiu fazer dele uma espécie de abrigo. Uma boa decisão, poderíamos dizer.
Acontece que dois meses depois, enfrentando problemas para encontrar comida (Chris caçou algumas codornas, um porco-espinho e chegou a matar um alce com sua espingarda, porém, sem saber como conservar a carne, ela acabou apodrecendo), ele achou por bem voltar para a civilização. Ao arrumar suas coisas e regressar pela trilha, para seu espanto, encontrou o rio Teklanika de outra forma. Por conta do derretimento das geleiras das várias montanhas ao redor, o Teklanika se transformara numa verdadeira torrente, violenta e intransponível. Por desconhecimento, Chris esperou tempo demais. Estava agora em apuros. Sem conseguir passar, teve que retornar ao ônibus. Nas semanas seguintes, cada vez mais sem encontrar caça ou comida, começou a passar mais fome. Desesperado, acabou ingerindo um tipo de planta venenosa, o que o deixou mais debilitado. McCandless acabaria perdendo o jogo da sobrevivência para a natureza. Ela minaria totalmente suas forças, e ele morreria de inanição algum tempo depois.
O detalhe importante a ser dito é que, embora McCandless tenha passado semanas naquele local sem ver ninguém, não se trata de uma área significativamente selvagem quando comparada à outras do Alasca. A leste de onde ele estava há uma rodovia, que é a principal ligação entre as cidades de Anchorage e Fairbanks (de onde ele inclusive veio com a carona). Para o sul, ficava o Parque Nacional Denali, com toda sua infraestrutura. Dois ou três dias caminhando nessa direção, seguindo o Teklanika, ele encontraria uma ponte da principal estrada que adentra o parque e atravessa o curso d'água — se não esbarrasse antes com algum guarda-florestal, turistas ou qualquer rastro de civilização. O mais chocante, porém, é saber que a apenas 800 metros do local na trilha onde ele tentou atravessar o Teklanika havia uma cabine do USGS, o serviço geológico dos Estados Unidos. Ela, provavelmente, estaria vazia. Acontece, contudo, que ali existia um cabo de aço com um cesto de passageiro preso a ele usado para atravessar o rio.
A lição que aprendemos com estórias assim é a de que, seja qual for sua aventura, é essencial saber medir os obstáculos que poderão advir dela. Conhecimento e preparo nunca são demais, e o contato direto com a natureza é algo sério! Avaliar as condições, examinar a si mesmo, projetar o adiante: considerar-se apto é a junção de tudo isso. Muitas trilhas parecem banais, mas não o são; este é um termo vulgar diante da natureza! Podemos taxá-las de fáceis — isto se você já possui alguma instrução —, mas a natureza é a natureza. Lembre-se, as pessoas são diferentes: umas estão acostumadas a escalar picos na Cordilheira do Himalaia, outras, no máximo, foram ao parquinho do seu bairro levar os filhos para brincar. Cada um tem um limite. E todos possuem uma linha a ser cruzada.
Mesmo que o seu limite esteja mais próximo ou distante dependendo do quão experiente você é, isso é menos importante do que o fato de se estar na fronteira, cercado totalmente pelo selvagem. Por isso encare a natureza sempre com respeito. Não importa quantas léguas adentre uma floresta, o perigo começa assim que nela pôr os pés. Sob a copa escura e misteriosa de suas árvores, ele só aumentará; o barulho da civilização ficará para trás e somente o silêncio causado pela angústia e o desconhecido irão permanecer. Quando, porém, a linha que define o medo — o seu “amigo” medo — for cruzada —, saiba que, prosseguindo, ficará distante demais para você voltar. Ter medo não significa uma fraqueza. Todos temos medo. Ele é um alerta que nos avisa sobre onde estamos pisando. Ter coragem é superar os medos. Mas nunca devemos deixar de ouvi-los. Sempre devemos estar atentos a cada passo, a cada novo limite que cruzamos na natureza.
APENAS QUERER, NA NATUREZA, NÃO É O BASTANTE. ÓBVIO QUE O ENTUSIASMO É IMPORTANTE, MUITO ATÉ, MAS ELA COBRA E EXIGE DE NÓS MAIS DO QUE A VONTADE. PODEMOS NOS DIVERTIR ESTANDO NELA, MAS A NATUREZA NÃO BRINCA. ELA CONTINUA SENDO A MESMA: SEMPRE SELVAGEM.


Em 28 de abril de 1992, Chris McCandless, "ansiando por vagar por terras desconhecidas, por encontrar um ponto em branco no mapa", como escreveu Krakauer em "Na natureza selvagem", pegou uma carona no Alasca que o deixou no início de uma antiga estrada, já em um lugar bastante isolado do interior daquele território. O homem que o levou até esse lugar, percebendo não possuir o rapaz calçados adequados para aquele terreno, deixou com o jovem uma par de galochas. Chris seguiu sozinho pela estrada até o rio Teklanika. McCandless atravessou o rio sem problemas (por estar, então, raso) e prosseguiu pela trilha que encontrou depois até achar um ônibus abandonado numa clareira. Ele decidiu fazer ali uma espécie de base. Dois meses depois, isolado naquelas terras e já enfrentando problemas para achar comida, achou por bem voltar para a civilização. Ao regressar pela trilha, para seu espanto, encontrou o Teklanika em outro estado: com o delego, ele agora era uma torrente furiosa que não podia ser atravessada. Sem escolha, o aventureiro retornou ao ônibus. Nas próximas semanas, sem encontrar caça, começou a passar mais fome. Desesperado, acabou ingerindo um tipo de planta venenosa, o que o deixou ainda mais debilitado. McCandless acabaria perdendo totalmente suas forças e morrendo ali, naquele lugar selvagem. Se possuísse um mapa da região ou tivesse se informado melhor, saberia que a apenas 800 metros rio abaixo do local onde estava o ônibus, havia um cabo de aço com um cesto de passageiro. O mesmo estava ancorado do seu lado do rio. §












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